Alexandre Vogler e Realengo

Queimemos as gôndolas, estas cadeiras de balanço dos cretinos, e ergamos aos céus a imponente geometria das pontes de metal e dos howitzers empenachados de fumaça, a fim de abolir as curvas cadentes da velha arquitetura.

Marinetti, Contra a Veneza passadista

As relações de poder e a periferia sempre permearam a obra de Alexandre Vogler. Foi assim com a Operação Olho Grande, em que ironizava a ação da polícia carioca na coibição do comércio ambulante da cidade, ou em Base para unhas fracas, que acaba de ser transformado em vídeo. Em Mapas invisíveis, o artista mergulhou em Realengo,[1] importante bairro da Zona Oeste do Rio. Trabalhos de percepção sutil, as pinturas em guache, carvão e aquarela da série Campo de Marte foram inspiradas no mobiliário urbano que cerca a Praça do Canhão, o Campo de Marte do bairro, lugar onde está instalada a Escola Militar do Realengo, criada em 1913.

Em visitas ao bairro, Vogler se deteve nos artefatos de metal que isolam e interditam o território militar – e que têm a mesma função dos cavaletes usados pelas companhias de trânsito e as fornecedoras de luz e gás do Rio. Pintadas de preto e amarelo, essas peças são uma cruz transpassada por um terceiro eixo de metal. Transformam áreas públicas em privadas, pertencentes a um único grupo. O artista enxergou em sua forma, que lembra uma estrela ou mesmo um feixe de espinhos, uma grande proximidade com as pinturas, esculturas, desenhos e projetos futuristas de Filippo Tommaso Marinetti, Giacomo Balla, Carlo Carrà, Luigi Russolo e Umberto Boccioni.

Realengo tem sua história marcada pela questão bélica e militar.[2] Ocupado pela academia militar desde o início do século XX, também abrigou uma grande fábrica de pólvora e cartuchos até 1978. Em sua pesquisa, Vogler descobriu que parte do desenho atual do bairro deriva dessa questão bélica, já que os primeiros conjuntos habitacionais de Realengo foram construídos para dar moradia aos trabalhadores da fábrica.

Com a aproximação da iconografia militar com o futurismo, Vogler faz uma operação interessantíssima, destacando os pontos em comum entre a ideologia do exército brasileiro, fundamentada na apropriação do positivismo de Comte, e os movimentos de vanguarda do início do século XX.  Em 1889, os militares surpreenderam artistas e intelectuais que conspiravam contra a monarquia proclamando a República de repente. A bandeira cultuada pelos profissionais liberais – a mesma da Inconfidência Mineira, com os dizeres Libertas quae sera tamen (“Liberdade, ainda que tardia”) – foi substituída por outra, onde se lê “Ordem e Progresso”.

E o que isso tem a ver com o futurismo, afinal? Todos os movimentos de vanguarda das décadas de 10, 20 e 30 na Europa traziam em si um desejo de progresso. A rejeição e a condenação do passado eram consideradas inevitáveis para se atingir o futuro.  Líder do futurismo, Marinetti acreditava que só seria possível atingir o futuro na velocidade desejada se a sociedade demolisse, violentamente, qualquer vestígio da “cultura passadista”. Em 1910, ele e seus companheiros subiram no alto do campanário da Catedral de São Marcos, em Veneza, e, segundo testemunhas da época, jogaram um milhão de panfletos Contra a Veneza passadista, que tem um dos trechos reproduzido na epígrafe deste texto. Além de sugerir que toda a arquitetura veneziana fosse destruída e substituída por outra, futurista, Marinetti concluía: “Que venha, enfim, o reino da Luz Elétrica libertar Veneza de seu luar venal de salas mobiliadas”.

O passo seguinte ao da condenação do “passadismo” era criar uma arquitetura futurista. Carrà e Boccioni já tinham feito alguns esboços, mas vai ser um arquiteto de Milão, Antonio Sant’Elia, quem vai plasmar em seus projetos urbanos todo o pensamento de Marinetti. Utópicas, suas cidades seguem um plano integrado de racionalização. São cidades em movimento, que se transformam constantemente, como queria Marinetti. Em seu Manifesto da arquitetura futurista, de 1914, Sant’Elia diz que deveríamos entender a “cidade futurista como imenso e tumultuoso estaleiro (…) e a casa futurista deve ser uma máquina gigantesca”. Antecipa, assim, o conceito da casa como uma “máquina de morar” de Le Corbusier.

De maneira muito sutil, Vogler aproxima dois autoritarismos. Ainda que as vanguardas artísticas nem sempre tenham sido totalitárias intencionalmente – e que de fato fosse preciso uma carga de violência para romper com séculos de academicismo – parte da ideologia desses revolucionários do início do século XX acabou sendo corrompida e utilizada aos pedaços, coada, pelas lideranças ditatoriais da Europa dos anos 30 e 40.

Ao criar essa rede de significados a partir da cultura militar do Realengo, Vogler traz à tona parte do passado do bairro, mas também aponta para seu presente. Realengo sofre, como boa parte da Zona Oeste carioca, com outra forma de poder armado – e bastante organizado: as milícias, que, em troca de suposta segurança, mantém moradores e comerciantes sob um manto de violência e subjugação econômica.

 

[1] Uma curiosidade: embora a história oral tenha perpetuado a versão de que o nome Realengo seja a contração de Real Engenho, não havia um engenho sequer nas terras da região. As terras onde hoje está o bairro foram cedidas para comerciantes portugueses em 1814 para pastagem bovina, que garantiriam o abastecimento dos talhos (açougues) da cidade. É bem provável que o nome Realengo se refira às “terras realengas”, termo utilizado para denominar tudo o que estava distante da Coroa.

[2] Sobre isso, uma curiosidade: Realengo aparece na letra de Aquele abraço, música de Gilberto Gil (“Alô, alô, Realengo, aquele abraço”) porque ele e Caetano Veloso foram presos durante a ditadura militar e foram para celas nas unidades militares da Zona Oeste. No livro A canção no tempo, Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello contam que Gil começou a compor aquela que talvez seja sua canção mais popular logo depois de ser solto, em 1969, enquanto negociavam sua ida para o exílio em Londres. Ele manda “aquele abraço” para Realengo porque era assim que os soldados o saudavam. A expressão ficou muito popular na época porque era um bordão do comediante Lilico em um programa televisivo.