Colapso
A idéia da exposição é discutir o conceito de colapso presente nas obras de Alexandre Vogler, André Komatsu, Guga Ferraz e Marcelo Cidade especialmente concebidas para essa exposição. O colapso pode ser o princípio norteador da obra (e aqui se aproximando, por exemplo, de outros conceitos como ironia ou violência). Pode inclusive não corresponder a uma espécie de desejo coletivo do público a respeito do significado daquela obra (e o quanto, portanto, ela pode subverter as idéias de belo e empatia). Pode evocar temas mais específicos, tais como a política e suas estruturas de poder. Pode encontrar um diálogo bem sucedido com as noções de acidente e precariedade. Ou ainda associar-se a idéia de falha tanto na aparição de uma obra que deu errado ou que não correspondeu ao anseio original do artista.
Há algo nas obras desses artistas que evoca uma necessidade de desestabilizar o espectador e suas convicções ideológicas. Tornar o mundo mais suscetível à crítica, permitir que o nosso olhar esteja mais atento a estruturas (políticas, sociais, econômicas) que invisivelmente corrompem pouco a pouco a nossa percepção de mundo. Há um dado em especial que também conecta esses artistas que é o fato das duas cidades – Rio de Janeiro e São Paulo – nos quais eles moram estarem passando por um processo de gentrificação, e em particular os seus Centros e seus respectivos entornos, que pouco a pouco tornam-se bolhas imobiliárias. Essa experiência é o princípio norteador de Retrofit (2012), o projeto de Vogler para a parede Gentil que por sua vez “vaza” para o interior da galeria, misturando ou invertendo espaços público e privado. Utilizando uma arquitetura vitral que assemelha-se aos novos prédios que povoam o Centro e a zona sul carioca, o artista questiona quais são as rupturas e males causados por esse novo processo urbanístico e arquitetônico pelo qual o Rio passa mas que ao mesmo tempo inclui um potencial claro de exclusão e migração. Ainda no aspecto político, o colapso pode ser evocado nos inúmeros discursos que surgem a respeito da relação entre público, mercado, instituições de arte e produção estética. A mídia, em vários momentos, exalta que o sucesso de uma exposição ou feira de arte – como se ambos tivessem o mesmo propósito, digamos, educacional – mede-se no número de visitantes ou no volume de vendas, no caso do último. Em várias ocasiões, as matérias sobre artes visuais publicadas na imprensa exaltam as cifras negociadas em um determinado leilão ou quem freqüentou determinado vernissage. Qual(is) é(são) o(s) tipo(s) de público que a arte está moldando? Tornar o público mais atento ao seu entorno e em que condições a obra de arte se posiciona politicamente são discursos que emanam dessas obras.
Por outro lado, a obras dos quatro artistas evocam o espaço público como um lugar poeticamente expressivo. Seja na representação de processos construtivos e de edificações, no caso de Cidade e Komatsu, ou de ligações políticas com a cidade no caso de Vogler e Ferraz, há indícios de ruínas e a idéia de desconstrução. Seja no recolhimento de entulho ou material de construção no caso de Komatsu ou da imagem de indivíduos dominados e subjugados no caso de Ferraz, para citar dois exemplos, os artistas atribuem novas funções ao que era rejeitado ou marginalizado, seja para empregá-los na produção de objetos e instalações, seja para tomá-los como suporte de uma idéia assumidamente libertária. O projeto de Ferraz, por exemplo, desloca a imagem do céu para a parte inferior do viaduto popularmente conhecido como Viaduto da Paulo de Frontin, localizado no Rio Comprido e construído nos anos 1970. Finalmente, a população daquelas imediações metaforicamente teria a oportunidade de ver a paisagem que foi negada desde a instauração daquela estrutura de cimento. No vídeo Desgovernado (2012) de Komatsu a aparição de uma estabilidade provisória é o mote. Tendo instrumentos de precisão e construção como personagens, estes a todo o momento têm a sua funcionalidade, digamos, abalada. Já as obras de Cidade lidam com a idéia de embate social, com uma acidez que o coloca em um lugar muito específico na história da arte brasileira. Em Sugestão de problemas e formas (Vandalismo é um mito) (2012), o artista se alinha a uma estratégia bem interessante: de forma irônica e inusitada, Cidade inscreve no chão da galeria, sob uma base de cimento, a expressão que é o subtítulo da obra. Há algo de desagregador e sarcástico (lembramos logo de “A pureza é um mito” e “Mitos vadios” respectivamente frase e conceito de Oiticica, que ilustram a sua forte ligação com a cidade) e ao mesmo tempo utópico e poético nessa obra.
Os quatro possuem suportes e poéticas semelhantes, e quando colocadas em vizinhança passam a ter uma contaminação inevitável. A discussão sobre colapso, ruína ou falha na obra desses artistas de forma alguma pressupõe uma idéia de fim da arte, mas afirma especialmente uma visão política e ideológica do mundo, sem ser panfletária. É falar das engrenagens de poder de uma maneira bem pontual. Por outro lado, não há uma clara definição de lugar em seus trabalhos, mas a transparência de uma falência de mundo, o que novamente não impõe necessariamente uma idéia niilista às obras deles mas pelo contrário, nos faz refletir sobre os caminhos que a política e nossa visão de mundo vem adotando no presente. É como se as obras desses quatro artistas formassem um coro, um sussurro intermitente.
Felipe Scovino