Entrevista com integrantes do Atrocidades Maravilhosas realizada em 18 de novembro de 2009 no ateliê de Ronald Duarte, na cidade do Rio de Janeiro

 

Felipe Scovino – Como se estabeleceu essa rede? Não digo como vocês se conheceram, mas qual o motivo de vocês terem se reunido? E por que durou tão pouco tempo?

Alexandre Vogler – Nos conhecemos na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Todos os artistas que compuseram o Atrocidades Maravilhosas participaram da graduação de Belas Artes, do mestrado em Artes Visuais da EBA e do Ateliê 491. Alguns tinham se formando em 1996, 1997, quando abrimos o 491. Outros tinham aberto outro ateliê em Niterói, do qual o Felipe Barbosa participou. Ducha e Guga Ferraz tinham um outro ateliê junto com o JC na Rua Pedro Américo. Enfim, era o momento em que saíamos da graduação e começávamos a nos conhecer e criar redes, montando ateliês e dividindo a casa com o coletivo. Todos os artistas que participaram do Atrocidades se conheceram por conta desse panorama. O momento de formação do Atrocidades deu-se em 1999. Eu estava fazendo o mestrado na EBA. Então a minha motivação pessoal era muito por influência da cultura visual, sobretudo do corredor da Avenida Brasil, quando íamos para o Fundão, e tomávamos contato com os lambe-lambes. Lembro de comentar com a moçada sobre a possibilidade de criarmos um trabalho que pudesse ter aquela dimensão e que dialogasse como aquela publicidade dialogava naquele corredor. Esse era um tema que reverberava também no Ateliê 491. Recordo-me de ter participado do Arte de Portas Abertas, mas que depois de um tempo percebemos que não valia mais a pena. Meu primeiro trabalho [com intervenção] chamava-se Morro no Rio, que eram uns sacos, como se fossem uns sacolés de Brizola, de cocaína, onde imprimimos a imagem do Cristo Redentor e colocamos numa escadaria da Rua Joaquim Murtinho. Isso foi em 1999, e na época eu já tinha contatado algumas pessoas e começava a fundamentar a parte logística: como conceberíamos o trabalho naquela escala? Muitos dos que participaram também tinham experiências com serigrafia, como o André Amaral, o Roosivelt Pinheiro, o Ronald [Duarte] e o Felipe [Barbosa].

Ronald Duarte – Você imprimiu alguns na Fundição Progresso e no 491.

Vogler – Imprimimos tudo na Fundição, e esse tempo de revelação durou praticamente todo o ano de 1999. Consegui reunir aquela moçada e colocar o que era mais ou menos um plano de ação: pensar uma imagem de um cartaz assim como um local específico e repeti-lo, algo de caráter serial. Na época, reuni os integrantes do Ateliê 491, alguns artistas que estavam fazendo o mestrado (incluindo o Edson Barrus e o Arthur Leandro) e passamos um ano pensando nesse projeto de ocupação. Como todos eram estudantes, ninguém tinha dinheiro para efetuar aquela história. Para fazermos os trabalhos, precisávamos comprar as ripas, fazer o chassi, comprar e esticar o nylon, fazer a arte final. Fazíamos isso tudo numa xerox.

Ronald – Era pobreza total!

Vogler – Depois passávamos óleo de cozinha e secávamos para o trabalho ficar transparente e finalmente revelarmos a tela.

Vogler – Isso era final de 1999. Eu queria que tudo começasse logo, até porque precisava ter o meu cartaz pronto, porque eu tinha passado para uma residência em Portugal, e em março já estaria viajando.

Ducha – Mas é importante destacar que todos faziam ao mesmo tempo o trabalho de apenas um dos artistas.

Vogler – Exatamente. E eu queria começar logo porque o Guga Ferraz tinha conseguido um espaço, a convite do Perfeito Fortuna, na Fundição Progresso para as nossas experimentações e produções. Isso foi no segundo semestre [de 1999]. Nos mudamos com todo o material para aquele espaço. Foi o momento em que começamos a imprimir.

Renato Rezende – Isso foi o Alfândega?

Vogler – Não, o Alfândega foi um ano depois.

Renato – Ainda não era o Atrocidades?

Vogler – Não, era simplesmente uma ideia.

Ronald – Atrocidades é uma ação coletiva com vinte artistas. E isso tudo que o Vogler relatou, que é o momento, o espaço, não tinha essa ideia dos vinte artistas ou o conceito de público, de coletivo. Os vinte artistas não se reuniram nem fizeram uma oração. Inclusive, penso que os vinte nunca se encontraram, nem no dia das ações. Às vezes uns iam, outros não iam, era uma coisa totalmente acéfala. O Vogler reuniu o grupo e nunca propôs o trabalho que o artista deveria fazer, mas simplesmente perguntava: “Quer entrar? Sim? Então faça!”.

Renato – Mas tem uma hora que vocês dão um nome à ação.

Vogler – Depois de eu ter conjugado essa história toda e otimizar a parte “executiva” de orçamento e material, eu dizia ao artista onde era o lugar e ele corria atrás. Eu marcava semanalmente encontro com o artista para organizar o trabalho dele. Ao longo dos meses, percebemos que se configurava como uma ação coletiva, não como um coletivo de artistas, mas enquanto ação coletiva. Então vamos dar um nome pra essa história. Eu cheguei com um logotipo do “Rio, cidade maravilhosa”, que era o logotipo da prefeitura do César Maia, que era “Rio”, aquele R, uma bola, que era o Sol, e “cidade maravilhosa”. Eu lembro que começamos a fazer algumas variações dentro daquele logotipo que pudesse mudar o sentido daquela titulação. Mas foi muito mais uma decorrência visual do que um conteúdo mesmo.

Ducha – Tem a história do Anselmo [museólogo, colecionador e amigo dos artistas envolvidos] que na última hora comprou um trabalho de cada um e nós usamos esse montante para comprar resma de papel.

Ronald – Exatamente. E também tinha o seguinte: o tipo de papel que precisávamos só era vendido para gráfica, e não para pessoa física. Eu e Vogler conversando, pensamos: será que se ligarmos para o Passos, dono da gráfica Velha Lapa, ele não resolve essa? E ele topou.

Ronald – Foi o Roosivelt quem teve a ideia e vendeu a coleção para o Anselmo.

Vogler – Isso possibilitou que melhorássemos a qualidade da tiragem inicial (que foi de 250 exemplares) e comprássemos um material bom. O convite ao artista era assim: explicava que o trabalho seria um lambe-lambe, os custos e que basicamente ele teria que pensar em uma imagem e em um local. E assim foi criando-se esse corpo. Já quando fomos para São Paulo, em 2001, havia artistas que trabalhavam com lambe-lambe e outros que não. Mas inicialmente todos trabalhavam com lambe-lambe. E conseguimos finalizar esse processo em um ano com um custo aproximado de R$ 100 para cada artista. É importante destacar que na época não havia uma genealogia de intervenção urbana, nem tampouco de coletivo de artes. Então, por mais que hoje em dia nós reeditássemos os mesmos cartazes e colocássemos na rua, seriam ingênuos, trabalhos menores.

Renato – Tinha uma ingenuidade.

Vogler – Se formos destacar os outdoors do Nelson Leirner na década de 1960, eu acredito que sim. Mas penso que a nossa genealogia e referências eram da cultura visual e não da história da arte. E como foi um fenômeno que, de certa forma, teve alta incidência nos primeiros anos dessa década, foi o primeiro trabalho de intervenção urbana de muitos de nós, e muitos também se caracterizaram por isso.

Renato – Mas o que vocês queriam? Fazer uma intervenção urbana ou queriam que o trabalho fosse visto por outras pessoas?

Ronald – Intervenção urbana, ação coletiva.

Ducha – Por isso que era importante todos irem para a rua ao mesmo tempo…

Ronald – [interrompendo] Até mesmo para serem presos juntos.

Ducha – É, também tem isso. Cada um tinha uma tiragem de 250, isso dá 4.000. Achávamos que daria para fazermos da noite pro dia, e fizemos em duas, três noites. O curioso é que fizemos nossas próprias invenções na hora de colar os cartazes. Na primeira noite tivemos a ajuda de um profissional, que acabou não dando certo. Decidimos não ter mais ele. Depois, descobrimos uma cola que não precisava de polo, usávamos soda cáustica para cozinhar a farinha com água. Corríamos o risco de nos sujarmos com aquela cola, que era altamente corrosiva. E também havia o risco da polícia chegar a qualquer momento.

Renato – Vocês foram presos?

Ducha – Não, mas fomos interpelados em uma madrugada em Benfica.

Ronald – O Ducha tinha acabado de ir embora quando a polícia chegou.

Ducha – Foi em Benfica, é verdade.

Renato – Houve divulgação na mídia sobre o trabalho do Atrocidades?

Vogler – Não. Achávamos que não precisaríamos de mídia, porque o próprio trabalho já era uma mídia, então naturalmente ele chegaria ao público mesmo que não procurássemos por isso.

Ronald – Lembro-me que vários lambe-lambes foram arrancados no dia seguinte, e outros ficaram por alguns dias.

Felipe Barbosa – O meu trabalho eu afixei depois.

Ronald – O meu também. Coloquei na Fundição Progresso.

Vogler – Quando você coloca um trabalho na rua é arte experimental, e arte experimental não pode dar só certo.

Ducha – Como não havia uma expectativa muito grande, o que dava errado transformava-se numa lição de aprendizado. Não voltávamos tristes para casa, porque “deu errado”.

Felipe Scovino – Vocês não se importavam com essa peculiaridade do trabalho, o desaparecimento poucos minutos dele ter “chegado ao mundo”?

Vogler – Nós não acompanhávamos também. Não ficávamos ao lado do trabalho.

Ducha – Mas eu consegui voltar para fotografar o meu.

Vogler – Quando você expõe numa galeria, 500 pessoas assistirão o seu trabalho, e aquelas mesmas 500 pessoas verão o seu cartaz em 15 minutos de trânsito, ali no meio da rua. Então mesmo que ele tenha durado um dia, eu me dei por satisfeito.

Felipe Barbosa – Os trabalhos também não eram assim assinados. Eram uma aparição na cidade.

Vogler – Em três dias, conseguimos colar, pelo menos, uns dez cartazes do meu trabalho. Mas havia vinte. Então durante um ano as pessoas se mobilizaram e foram fazendo. A coisa continuou. Eu viajei e voltei um ano depois, mas, enfim, o ateliê continuou sendo usado, o material ficou lá, etc.

Renato – Você, Vogler, era o centro da coisa?

Vogler – Fui eu quem propôs a ação para cada um dos artistas. E isso era legal porque por mais que houvesse um proponente, o trabalho do artista era algo individualizado. Penso que isso é algo que difere dos coletivos, porque eles fazem um trabalho. O Atrocidades foi um trabalho, que na realidade eram vinte.

Ducha – Havia uma liberdade muito grande. Lembro-me que o trabalho do Ronald não tinha nada a ver com serigrafia, e ele virava a noite revelando a tela dos outros. Um não perguntava para o outro como seria o trabalho.

Renato – O Ronald falou que não era uma igreja, mas é um trabalho voluntário, uma doação.

Ronald – Doação de todos.

Renato – O artista individualista morreu naquela hora.

Vogler – Havia uma amizade e uma vontade de querer ver aquele trabalho – não só o seu, mas o trabalho de todos, porque você se entusiasmava pelo trabalho dos outros também – assim como uma consciência de que aquele era um trabalho de escala. Então não adiantava fazer apenas o seu trabalho, você tinha que ajudar o trabalho de todos, para aquele conjunto de potências seguir para a rua.

Ronald – Havia uma ingenuidade em que achávamos que não precisávamos nem de mídia. Todos sabiam que aquilo seria um fim.

Renato – Era uma utopia.

Ronald – Era uma utopia que, na verdade, deu tão certo que ultrapassou a própria utopia, virou uma realidade. Uma realidade que não é.

Felipe Scovino – Porque existe um filme sobre o processo.

Ronald – O mais engraçado que tudo foi feito, impresso e organizado sem muito planejamento, e ninguém sabia que a ação se transformaria em filme.

Vogler – Inicialmente tínhamos conversado com o Miguel, que era do CMI (Centro de Mídias Independentes), e que cobria manifestações anti-globalização, que nós achávamos que tinha tudo a ver. Falei com o Miguel, mas ele não podia. E isso já estava bem perto de fazermos o lançamento da história. Convidei o Lula Carvalho para filmar uma ação que faríamos na rua. Enfim, expliquei do que se tratava o Atrocidades. Ele concordou e apareceu com dois amigos – Renato Martins e Pedro Pellegrino – e com umas latas. Tínhamos um esquema de cinema, que ninguém imaginava que pudesse acontecer. A filmagem foi feita com filme vencido, a luz era o farol do carro, enfim, uma linguagem experimental.

Ronald – E havia uma incógnita: ninguém sabia como conseguiríamos editar e finalizar o filme. Se não fosse um prêmio que eles ganharam, não sei como seria. E depois conseguimos a trilha sonora com o Pedro Luís, fizemos um lançamento com duas sessões lotadas no Odeon! Aí virou mito…

Renato – Sem o filme, vocês não teriam a dimensão pública do trabalho.

Vogler – Exatamente. Essa dimensão pública foi a exposição midiática. Temos que considerar que o filme já passou quatro vezes na TV Brasil, em cadeia nacional. E que na época ele entrou em circuito, também. Ele passava antes do Matrix, nos cinemas do Recife.

Felipe Barbosa – Não sei se vocês concordam, mas acho que o que determinou o Atrocidades como um grupo foi o convite para o Panorama da Arte Brasileira, em 2001. Os curadores já estavam convidando outros grupos, e aí convidaram o Atrocidades, que nem era um grupo! Então pensamos: se somos um grupo, o que faremos?

Ronald – Mas isso aí também já foi uma forçação de barra.

Vogler – É preciso contar uma pequena história antes de chegarmos a esse convite. Havia um tapume na esquina da Joaquim Silva com a Mem de Sá, onde nós colocávamos o resto dos cartazes que não tinham sido utilizados. Era uma espécie de galeria permanente dos nossos cartazes. Enquanto houvesse cartaz, ele era afixado naquele lugar. E nós colocamos vários cartazes. Em 2001, o Ricardo Basbaum [um dos curadores daquele Panorama] que sempre passava por ali, viu os cartazes. Ele ficou interessado nos trabalhos e eu levei o filme para ele. Foi assim que o convite aconteceu. Ele nos convidou para fazermos uma intervenção no livro. Consegui uma van com a produção do Panorama e fomos para São Paulo. Então, foi a primeira vez que o trabalho se configurou como grupo, para além daquela produção dos cartazes.

Felipe Scovino – Quem foi para São Paulo?


Vogler – Eu, Guga, André Amaral, Felipe, Rosana Ricalde, Adriano Melhem, Geraldo Marcolini, Ericsson Pires, Mac – que também tocava no Hapax -, Luis Andrade. Fizemos alguns cartazes por lá e colamos o do Adriano, que era uma bula do Antrax…

Renato – Havia autorização para colar em qualquer lugar?

Vogler – Não, apenas em tapumes. Andávamos em uma Kombi e colocamos esse cartaz e o meu, que era Fé em Deus, fé em diabo. Havia alguns trabalhos na Avenida Paulista, também. O André fez uma performance com uma roupa de bico de chupeta. Andou pela Paulista vestido de bico de chupeta. Felipe tinha um trabalho no Ibirapuera. No dia seguinte ao da colagem dos cartazes, era a abertura do lance. Eu e Guga fizemos uma performance. A performance do André foi significativa porque meses depois aconteceu o Interferências Urbanas, em Santa Teresa, e nesse momento o Ducha fez o trabalho de intervenção no Cristo, Felipe e Rosana construíram uma “casa” no largo das Neves, Geraldo e Roosivelt também estavam pensando o contexto público.

Ronald – Atrocidades foi um estopim, o início de tudo, antes mesmo de coletivo, da ideia de grupo, de trabalho coletivo, de interferência urbana, de qualquer coisa. Atrocidades vem como esse aglutinador, esse amálgama. Em determinado momento somos convidados para o Panorama como grupo. Algo que nem sabíamos ou percebíamos ou simplesmente queríamos. Penso que é o momento em que percebemos e nos vemos no trabalho do outro. Nisso, cria-se o prêmio Interferências Urbanas. E esse grupo todo manda os seus trabalhos.

Ducha – Eu lembro bem desse trabalho que o Vogler citou no início, Morro no Rio. Ele foi um diferencial dentro de Santa Teresa porque os artistas sempre se inscreviam como ateliê para abrir à visitação. Uma pessoa entrava na sua casa. E isso foi uma coisa diferente porque o trabalho foi para a rua. Tanto que no fim desse evento a organização quis saber que negócio é esse de arte pública que vocês estão fazendo? Por que vocês não querem abrir o ateliê de vocês? Quiseram saber direitinho como era essa história de fazer arte sem o aparato de um profissional. E aí veio a ideia de fazer disso um prêmio. Tornaram-se eventos paralelos: o artista abria o ateliê e ao mesmo tempo trabalhos de intervenção pública estavam no espaço de Santa Teresa.

Vogler – Esse trabalho teve essa repercussão, e logo lançamos o Atrocidades. Por mais que não tenha sido um trabalho que tenha tido um grande apelo popular, o circuito ficou sabendo dele. E por conta disso, houve essa aproximação com a organização do Arte de Portas Abertas. O formato de interferência urbana, foi feito numa reunião no Ateliê 491…

Ducha  …que perguntou: quem vocês acham que poderia estar na comissão de seleção? Nós citamos os nomes e na primeira versão foram exatamente esses nomes que entraram.

Ronald – Eu acho legal o texto da Maria Zacorel no Jornal do Brasil. Foi a primeira pessoa que disse que foi no Rio de Janeiro que nasceu essa ideia de interferência urbana, e como essa experiência influenciou a cena de São Paulo e do Recife, e do próprio tema do Panorama de 2001.

Vogler – Voltando ao Interferências Urbanas, ele foi importante porque nas suas três primeiras edições, tivemos vários trabalhos excelentes (destaco o Cristo Vermelho, do Ducha, que atentou para o público a dimensão do que estávamos construindo) e essa experimentação – interferência urbana – se consolidou por ali. Havia verba…

Felipe Barbosa – Tinha assessoria de imprensa, bem ou mal os trabalhos estavam num contexto semi-público, porque como ele acontecia junto com o Arte de Portas Abertas, havia uma visibilidade grande de mídia grande.

Renato – Quando surgiu o primeiro Interferências Urbanas?

Vogler – Se não me engano foi em maio de 2000.

Renato – Quem fez a curadoria do Panorama?

Vogler – O Panorama eram três âncoras: Basbaum, Ricardo Rezende e o Paulo Reis, de Curitiba. E essa curadoria já chamava a atenção para os coletivos. Havia obras e/ou citações ao Alpendre, Torreão. Penso que tenha sido a primeira publicação de grande circuito que tratou sinceramente desta história. Em 2002 a curadora Marisa Flórido fez uma curadoria dentro do Rumos Itaú Cultural sobre intervenção urbana chamada Sobre(a)ssaltos.

Felipe Scovino – Se fizermos uma pequena história da arte pública no Brasil, há o Flávio de Carvalho na década de 1930 realizando Experiência no 2, o Grupo Rex realizando o happening Exposição Não-Exposição em 1967, Antonio Manuel realizando O corpo é a obra (1970)… Todos eles fizeram esses trabalhos à revelia de um sistema, de uma política de arte. Quando chegamos nos anos 2000, começa a haver uma institucionalização dessa prática que se chama interferência urbana, intervenção urbana, arte pública, seja o que for, com editais, bolsas, fomentos…

Ronald – Discordo que eles fizeram à revelia. Eles tinham um propósito muito maior do que o nosso, político. Eles tinham uma resposta muito mais imediata de recursos e muito mais à revelia da proposição, em si.

Vogler – Não acho.

Ronald – Você acha que não? Nós também tínhamos essa consciência?

Vogler – Acho esse dado institucional irritante. Se você concorre ao edital, se a prefeitura gere o recurso que você paga enquanto imposto… A instituição é você. Quando os seus alunos começam a falar: “vocês deixaram de fazer o Zona Franca, que era uma coisa feita ao Deus-dará e começaram a ganhar dinheiro da Prefeitura, como é que é essa história? Vocês não vão ser capturados pela instituição?” A instituição sou eu! A Prefeitura sou eu! Eu não vou deixar de ganhar dinheiro… Então eu acho que na época receber recurso do Interferências Urbanas não configurava uma institucionalização.

Ronald – Hoje as coisas estão se institucionalizando mais. Estamos sendo obrigados a fazer mais projetos…

Ducha – E mesmo tendo o Choque de Ordem, que queria regulamentar o que acontece de arte na rua, nós dissemos que faríamos o que quiséssemos.

Ronald – Exatamente. A gente não pede autorização nenhuma. Nem para o Fogo Cruzado, eu pedi autorização para incendiar os trilhos do bonde. Todos pensaram que sim, mas não houve.

Felipe Scovino – Sim, mas o fato é que hoje em dia você pode ganhar dinheiro sendo um artista que trabalha com intervenção urbana.

Ducha – Eu acho que você pode ter dinheiro para gastar no trabalho. Ganhar dinheiro até pode, se você num segundo momento vender o subproduto dele.

Felipe Scovino – O Interferências Urbanas é um exemplo disso.

Ronald – Eu não ganhei dinheiro.

Ducha – Ninguém ganhou dinheiro.

Felipe Scovino – Por exemplo, o último Interferências, se eu não me engano, concedia R$ 10.000 como prêmio. Minha questão não foi “você vai ganhar dinheiro com intervenção urbana”, mas “você vai ter o trabalho financiado por uma instituição, pelo Estado, por um edital para conceber uma obra que logo depois é lida pelo Estado como crime, sujeira ou dano à ordem pública”. Toda aquela suposta aura de tomar de assalto a cidade se perde.

Felipe Barbosa – A escala pública demanda um investimento diferente da escala privada, pelo simples fato do tamanho, sem contar a logística. Se você fizer uma interferência, dependendo do tipo de trabalho que for fazer, só financiado, não tem outra opção. O que não quer dizer que todo trabalho seja assim.

Ronald – A verdade é que o Atrocidades serviu como escola para todo mundo. Hoje em dia torna-se mais fácil lidar com as adversidades que o circuito de arte impõe, depois de ter passado pelo Atrocidades Maravilhosas.

Renato – Na década de 1970, até o começo dos anos 1980, existia uma questão: o artista era contra o sistema, o sistema oprimia a sociedade. Como se apresenta essa situação hoje em dia? Quer dizer, como o artista se relaciona com o poder? Seja o poder econômico, o poder institucional, o poder político…

 

Ronald – Acho que existe uma outra economia, independente dessa, da galeria, do mercado de arte, que passa por uma pseudo-ligação maléfica e falsa entre artista e curador, artista e crítico, artista e marchand. Acho que a galeria com que nós mais nos divertimos é a A Gentil Carioca, porque ela tem um espírito que não é aquele de um vendedor de obra de arte austero. Porque nós não temos nada a ver com isso. Nós passamos longe dessa história e acho que todos conseguimos driblar esse sistema. Existe um mercado paralelo ao mercado que nos interessa muito mais. Eu acho, quer dizer, estou falando um pouco do coletivo, apesar de que Vogler e Felipe também trabalham em galerias e o Ducha, não…

Ducha – Nessa diferença entre hoje e a produção artística dos anos 1970 é que eles tinham algo muito claro para se voltar contra, e para nós é mais difícil porque, por exemplo, eu me lembro de uma exposição [1a Mostra Rio Arte Contemporânea, em 2002] onde o Vogler fez uma pichação dentro do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, mediante um convite para expor o trabalho. Penso que é muito melhor estar dentro de uma instituição para falar o que você tem que falar do que ficar fora e brigar.

Ronald – É melhor você entrar no sistema maquinal do que você ficar do lado de fora se esgoelando. Mas eu acho que todos nós aqui, até por conta da própria formação, sabemos que ninguém é ingênuo de estar entrando num sistema, de colocar a cara a tapa…

Ducha – Fazemos concessões.

Ronald – Exatamente.

Vogler – Porque você pode fazer um trabalho dentro da instituição e ter uma contundência.

Felipe Barbosa – Se o trabalho é bom, não necessariamente a instituição estraga seu conteúdo.

Renato – Passados esses anos, qual a avaliação que vocês fazem do Atrocidades?

Ronald – Foi uma coisa utópica, ingênua e… 

Vogler – Penso que o dado do institucional é um problema da década de 1980, nos Estados Unidos, e que chegou com um atraso de uns quinze, vinte anos no Brasil. Mas quando chega, ela vem um pouco mais amadurecida, ninguém foi à rua por se opor à galeria. E as vezes que por acaso nós fomos convidados para exposições como Caminhos do Contemporâneo 1952/2002 no Paço Imperial, nós simplesmente colocamos o videocassete com várias fitas e o espectador podia escolher o que quisesse assistir, como se fosse uma locadora. Sentava e ficava vendo o trabalho de distintos artistas que participaram do Atrocidades ou tinham afinidades com ele. No mesmo ano [2002] fomos convidados para um festival de mídia tática em São Paulo, na Casa das Rosas. Era um evento que aglutinava vários grupos que trabalhavam com o que depois veio a ser chamado de “artevismo”. Esse fenômeno das intervenções públicas e dos coletivos já tinha começado a acontecer em várias cidades e a matéria que o Ronald citou tentou supostamente criar um mapeamento.

Felipe Scovino – Vocês participaram desse evento na Casa das Rosas como Atrocidades Maravilhosas?

Vogler – Sim, também em forma de vídeos…

Felipe Scovino – Tiveram, então, três situações com o Atrocidades enquanto coletivo…

Vogler – Quatro. Contando com o tapume da Lapa.

Ducha – O que penso que é interessante nesse ideia de coletivo é que estar em conjunto é um exercício legal porque quando você faz alguma coisa com alguém, você concede a liberdade para o outro fazer de maneira diferente que você faria se fizesse sozinho. E nesse caso o Zona Franca também era expressivo por conta disso.

Felipe Barbosa – O Zona Franca era uma continuação óbvia do Atrocidades. Alguns saíram, viajaram, mas muitos continuaram e outros foram agregados ou se agregando.

Ronald – O Zona Franca é uma extensão, com certeza, do Atrocidades, desse exercício de doação. Cada um juntava o que tinha para fazer o evento. A entrada opcional era R$ 1,99. Tinha gente que não pagava. E o que acontece? Esse exercício, o Zona Franca, foi uma grande escola. De todos os grupos coletivos que eu já participei, o único que era sem compromisso foi o Zona Franca.

Vogler – Nós agüentamos produzir o Zona Franca durante um ano. Ele começou a criar um perfil de apresentação que não era muito legal. Sempre a mesma coisa. Clima de sarau. Nesse momento todos desistiram, menos o Aimberé [César], que ainda aguentou mais 2 meses.

Renato – Aparentemente vocês se auto-produziam?

Ronald – Eu acho que tem tudo a ver com o cinema, com a história do cinema, porque todo mundo pensa que é um grupo organizadíssimo, mas são vários amigos que organizam de maneira bem nonsense, ingênua, caótica. E acho que isso jamais aconteceria de novo. Aconteceria, mas de uma maneira muito mais desconfiada.