Zona Franca – Fazendo nosso povo mais feliz

 

… e fez mesmo; durante 52 semanas ininterruptas um evento criado e coordenado por artistas funcionou numa sala, até então desocupada, da Fundição Progresso, promovendo um evento “muito próximo da anarquia clássica”(1).  Artistas, não-artistas e artistas-não-artistas se atravessavam no galpão quente e sujo que servia de sede para essa e outras iniciativas de uma rapaziada, em sua maioria oriunda da Escola de Belas Artes, desejosa por uma estrutura mais espontânea do circuito de arte. Isso foi ocorrer no inicio do ano de 2001, conseqüência de conflituosas reuniões na casa do artista Edson Barrus. Este, junto com Aimbere César e Guga Ferraz iniciaram conversas, ainda em 2000, sobre a promoção de um evento multimídia que concentrasse experimentações não só de artes plásticas, mas que integrasse outras práticas artísticas. Quando cheguei de Portugal, no começo de 2001, o nome já havia sido dado – Zona Franca. Ótimo. Liguei pro Roosivelt(2)e Adriano(3), marcamos uma reunião com os outros três e naquela noite mesmo começamos a contatar pessoas praquele que seria o Zona Franca inaugural. Primeiro a confirmação da Márcia X, depois Terence, Xico… Rubinho topou editar um vídeo reunindo intervenções urbanas (fenômeno, na época, bastante fresco ainda) e saímos da reunião percebendo que a coisa tinha começado a andar. Eu,confesso, acreditava que aquilo tudo ocorreria por mais três ou quatro edições, afinal produzir um evento semanal seria barra pesada, mas desde o começo fechei com a banda partidária do evento semanal e ininterrupto – o processo conduziria naturalmente seu prolongamento ou não. A proposta parecia excitante e num certo ponto pioneira. Todos nós tínhamos tomado contato com o CEP 20.000, palco de experiências memoráveis, mas era justamente essa palavrinha – palco – que procurávamos exterminar. Esse contexto espacial que localiza e separa artista e público. Não havia muitos vestígios sobre onde nem quando algo ia acontecer (ou mesmo se ia acontecer). Apenas uma pequena arquibancada, que tomamos emprestados lá mesmo na Fundição, sugeria uma condução possível – talvez por isso a mudamos tanto de lugar aquele ano.  De toda forma o CEP era uma referencia importante juntamente com iniciativas anteriores por nós produzidas: Aimberê  trazia a experiência do “Segundas Urbanas”, evento de poesia que produziu junto com Samaral, no Castelinho do Flamengo em 99, Roosivelt produzia o “Atelier Aberto” na EBA e Guga o “Prata da Casa”, nesta mesma escola, além das “Festas do Baco” – uma delas inclusive assegurou a cessão do espaço na Fundição Progresso. Nesse mesmo espaço produzi o Atrocidades Maravilhosas, em 99/00, trabalho coletivo de intervenção urbana que tinha como atelier de trabalho essa sala que futuramente funcionaria o Zona Franca. O caminho natural seria a construção de um novo espaço de experimentação.

As primeiras edições ainda envolveram algum pensamento sobre curadoria do evento contrabalançando performance, musica, poesia, vídeo, artes plásticas, etc. O público começava a se formar e aos poucos esse público passava a realizador. O espaço era sugestivo, e, se por um lado as realizações funcionavam sem qualquer suporte financeiro, por outro a falta de limites para sua realização fomentava a criação. O convite era feito da seguinte forma: – Se houver algum trabalho que você tenha deixado de fazer em alguma instituição (por qualquer motivo que seja), faça no Zona Franca. Era natural que, mediante a essa provocação, boa parte desses trabalhos conservassem conteúdo experimental e radical. O contexto contribua como podia, público atento e aplicado – a cerveja era acessível e a canabis potencializava o sentido. Os eventos aconteciam sempre às segundas-feiras, dia morto na Lapa e bastante vivo na linha de Exu. Seu funcionamento rolava na base do “a todo custo”, natal, feriado, ano novo… Por lá passaram mais de 200 artistas e grupos e o ambiente dionisíaco condicionava a potencia do trabalho. Ganhava quem falasse mais alto e isso promovia uma mudança de hábito dentro da solene produção de artes plásticas. Muitas vezes trabalhos se intercediam. Lembro do trabalho do Carlos Fefferman, na verdade uma crítica a proliferação de trabalhos em vídeo, quebrando a parede do espaço munido de uma sexta feira (4) no meio de uma apresentação de um filme. O trabalho servia para discutir a priorização do plano de representação em detrimento do plano de fato. A ação provocou confronto pela arbitrariedade direta de seu atravessamento e a discussão (mesmo) entre os realizadores dos trabalhos. Outras coisas se seguiram a isso como a escultura de Sandrigo Monteiro – um pneu preso a teto da sala – ao qual ateou fogo. Nesse dia o Zona, lotado, esperava pela apresentação de um Super 8 de Antonio Manuel e a platéia (que contava com a ilustre presença de  Ligia Pape) se assustava diante das portas trancadas por Sandrigo. Trabalhos como esse expurgava qualquer cerimônia quanto ao que poderia ser feito e quanto ao que se podia esperar daquelas noites. A participação espontânea começou a se tornar cada vez mais e mais crescente absolutamente consentida por uma estrutura aberta que naturalmente se instaurava e que pouco direcionava as ações. Pelo contrário, apoiava toda e qualquer imprevisibilidade delas.  Os artistas passavam a “se curar” e a produção circulava nesse contexto de anarquia, muitas vezes auto-destrutiva. Os concertos da banda de bit- industrial “Hapax” endossava esse espírito com apresentações catárticas onde tudo virava percussão e todos percussionistas. Uma piscina “Tony” foi adotada como “Piscinão do Zona Franca”, numa referencia ao Piscinão de Ramos, recém criado pelo então Governador do Rio de Janeiro – Garotinho. Desse mesmo governo foi retirado o logotipo para a criação da logo do Zona Franca, mantendo inclusive seu sub-título: Fazendo nosso povo mais feliz. Os contextos se cruzavam e isso enriquecia a criação de uma solução, não alternativa, mas afirmativa para o circuito e a circulação da produção artística naquele ano e para aquela geração. Tudo isso durou exatamente um ano findando na morte anunciada do Zona Franca no dia 1° de Abril (o que fez com que ninguém levasse a crer ). O último Zona Franca marcou uma noite de alta temperatura terminando, por fim, na ruína total do espaço e da tolerância da gerencia da Fundição Progresso para conosco. A ironia está nos efeitos de construção ideológica produzida por um fenômeno auto-destrutivo por natureza. Já naquele ano alguns eventos promovidos por iniciativas de artistas começaram a surgir na cidade iniciando o que viria se tornar tendência nos anos seguintes, talvez como reação ao cerimonioso ambiente das mostras de artes correntes. Ocupações de casas por artistas, como o Orlândia, surgiram juntamente ao fenômeno de tomada das ruas – as “intervenções urbanas” e a arte ativista ( esta por sinal motivada pelo novo contexto político instaurado em 11 de setembro de 2001 e mesmo antes em Genova e Seatlle). A arte carioca, marcada por sua flacidez mercadológica, ganha galerias geridas por artistas como Espaço Bananeiras, Ed. Galaxi, A Gentil Carioca, além do projeto Agora /Capacete, anterior ao Zona. Por fim, depois de relativo reconhecimento da imprensa fomos convidados a ocupar um galpão do cais do porto e produzir um novo evento nos moldes do Zona Franca, ao qual intitulamos “Alfândega”. O evento durou duas edições, em 2002 e 2003, reunindo entre 40 e 50 artistas por edição. O alto custo do evento fez com que ele se limitasse a essa vida curta depois do desinteresse da Prefeitura, patrocinadora do evento, em viabilizar a continuação do projeto.    

Notas:

  1. Extraído de declaração do artista Luis Andrade para o documentário “A (Re)volta do Zona Franca.
  2. Roosivelt Pinheiro.
  3. Adriano Melhem.
  4. Espécie de marreta, usado na construção civil.

Rio, fev. de 2006. Alexandre Vogler