A cruz desconhecida pelos demônios

 

Danielle Rodrigues Amaro
Universidade Estadual de Campinas

“As idéias não flutuam de maneira desencarnada acima das sociedades.  Elas só adquirem realmente importância ao se unirem estreitamente a necessidades destas últimas, adaptando-se às mutações por que elas passam.”

A inscrição do mal numa cidade de Deus

Em agosto de 2006, o artista Alexandre Vogler de Moraes foi acusado pelos habitantes do município de Nova Iguaçu (Baixada Fluminense/RJ) de ter disseminado o mal na cidade.  Motivo da acusação:  o artista havia pintado na encosta da Serra do Vulcão, logo atrás do Mirante do Cruzeiro, a imagem de um tridente.  A inscrição do símbolo fazia parte de uma oficina de arte pública, no Projeto Interferências Urbanas (evento promovido pela Funarte em parceria com o município).  No entanto, o então prefeito de Nova Iguaçu, Lindberg Farias, afirmou na ocasião que a prefeitura não tinha nenhuma responsabilidade, já que o artista haveria apresentado inicialmente uma outra proposta em homenagem à cidade e não tinha permissão para colocar o símbolo que, segundo o prefeito, é ligado diretamente ao diabo.

“Quando soube que tinha sido desenhado um tridente, mandei retirar imediatamente.  Ele tinha combinado de escrever ‘Eu amo Nova Iguaçu’.  Mas acabou colocando esse símbolo que afronta a cruz.  Desde pequeno que vejo a figura do diabo com tridente na mão.  Moramos numa cidade de Deus.”

O artista, em contrapartida, garantiu que não esperava por toda esta polêmica, considerando assim a posição adotada pela prefeitura como uma censura à produção artística.  O artista confirmou a versão do prefeito de que a inscrição proposta inicialmente à Funarte era “Eu amo Nova Iguaçu”, mas que por problemas de verba insuficiente e com o conhecimento dos organizadores do evento, o tridente foi apresentado como uma inscrição alternativa.  Disse ainda que a idéia do tridente, associado ao deus Netuno, não intencionava afrontar qualquer religião.  Além disso, apenas depois da pintura concluída, é que traçou possíveis relações entre o tridente e as religiões afro-brasileiras.  A saber:  na iconografia de Exu, o tridente é um dos seus atributos, personagem com o qual o cristianismo estabeleceu correspondência direta com o Diabo.

“A intenção da arte é provocar reflexão.  Mas também acredito que levantou questões religiosas, que deveriam ser encaradas de maneira democrática.”

Como se não bastassem as acusações de afronta à população local, ambientalistas de Nova Iguaçu esboçaram a intenção de responsabilizar tanto o prefeito quanto o artista plástico pelos possíveis danos ambientais provocados pela cal no local onde foi pintado o tridente.  Segundo eles, além de tornar a terra infértil, a cal atingiria o lençol freático, podendo causar danos irreparáveis.

Diante de quadro tão controverso, Vogler se mostrou surpreso pelo simples fato de que esse tipo de inscrição em rocha ser recorrente na região.  Inclusive, inscrições de cunho religioso, como, por exemplo, “Jesus salva”, “Deus é amor”, etc.  No entanto, as justificativas por parte do artista de nada adiantaram.

Um culto ecumênico foi, então, marcado no local da inscrição na tentativa de livrar o local do mal que ali se instalara com a imagem do tridente.  O prefeito da cidade, em entrevista concedida na época, afirmou acreditar que essa seria a melhor forma de tentar minimizar a situação e provar que a prefeitura não concorda com a ação do artista.  No evento, cerca de 40 padres e pastores estiveram presentes no culto ecumênico em desagravo a Nosso Senhor pelas ofensas cometidas em função da inscrição do tridente.  O culto contou ainda com a presença do prefeito Lindberg Farias.

Além do culto ecumênico, por iniciativa da prefeitura, 40 funcionários municipais passaram dois dias tentando apagar o tridente.  No insucesso do empreendimento, linhas foram traçadas por cima do tridente de forma a dar uma outra forma e disfarçá-lo, numa medida paliativa por parte da prefeitura diante da insatisfação popular.  Por fim, a imagem se resumiu a um enorme quadrado.  A prefeitura da cidade ainda ameaçou abrir um processo contra a “afronta” do artista.  No entanto, Vogler rebateu tal pretensão, afirmando que a prefeitura não tem elementos concretos que comprovem a acusação.

Uma semana após os acontecimentos, uma chuva torrencial caiu sobre a cidade, apagando em definitivo a imagem do tridente.  Mesmo tendo causado sérios estragos no resto do Estado, os habitantes de Nova Iguaçu a interpretaram como uma “providência divina”:  a chuva viria para livrar em definitivo a cidade da ação pecaminosa de Alexandre Vogler, apagando o tridente por ele inscrito e, por conseqüência, livrando-a do mal que se instalara através de tal símbolo.  Um adendo:  a mesma chuva “providencial”, com ventos de mais de 100km/h contabilizou os seguintes estragos:  em Itatiaia, a prefeitura cadastrou 1.016 casas atingidas por chuva de granizo;  em Jardim Gramacho, Duque de Caxias, pelo menos 200 moradores da comunidade de Maruim ficaram desabrigados;  no Rio de Janeiro, a cobertura metálica de um posto de gasolina em Campo Grande foi retorcida pelo vendaval;  em Santa Cruz, 80 moradores do bairro Morada Verde perderam suas casas.

O presente trabalho pretende analisar a ordem do discurso que se estabeleceu na cidade pela população e pelas autoridades políticas em resposta a imagem instalada pelo artista no Morro do Cruzeiro e a contra-resposta do artista.  Deseja-se ainda relacionar o trabalho com uma análise histórica e sociocultural do tridente como parte iconográfica do Diabo (conforme identificado pela população local), de Netuno e de Exu (de acordo com a proposta do artista) e as particularidades que o personagem Diabo toma no âmbito cultural brasileiro.

Entre a cruz e o tridente

Um tridente é inscrito num “morro do cruzeiro”.  Qual o problema de Alexandre Vogler ter inscrito a imagem do tridente atrás do Morro do Cruzeiro?  Por que o artista não poderia interferir no lugar com a imagem do tridente?  Qual o motivo da escolha do artista por tais imagem e lugar?

De início, é preciso partir do pressuposto que o “morro do cruzeiro” não é uma particularidade da cidade de Nova Iguaçu.  Em várias cidades ele se faz presente.  Talvez possa ser uma adaptação da Gólgota, onde Cristo foi crucificado.  Inclusive, há igrejas católicas em que o cruzeiro está embutido no próprio complexo arquitetônico.

Desde criança, tendo sido educada numa família de católicos praticantes, inúmeras vezes vi os padres esbravejando contra a quantidade de “despachos” deixados junto à porta da igreja ou do cruzeiro que esta abrigava (como a igreja fica no alto de um morro, a presença de um cruzeiro leva a crer que siga a hipótese de adaptação da Gólgota).  Os padres praguejavam, praguejavam, praguejavam e…  sempre havia alguma oferenda por lá.  Algo bem menos ofensivo para os paroquianos que para os padres.  Afinal, em frente da igreja há um terreiro do qual, ainda hoje, escutam-se as cantorias e os tambores gritando sensualmente.  Inclusive, a paróquia conta com freqüentadores bastante “flexíveis”:  são espíritas praticantes às segundas-feiras, quando acendem velas para as almas junto ao cruzeiro;  são umbandistas praticantes aos sábados, quando exercitam sua mediunidade, servindo de “cavalo” para o espírito que tomará posse da sua mente e do seu corpo;  e, finalmente, são católicos praticantes e fervorosos todo santo domingo, O Dia do Senhor, quando participam da Santa Missa.  Desta forma, o cruzeiro é apenas um lugar onde esta convergência de várias identidades religiosas se torna manifesta.  O morro do cruzeiro é, sobretudo, um lugar sagrado.  E este sagrado deve ser compreendido numa perspectiva mais alargada, e não estritamente cristã.

Sendo assim, quando Alexandre Vogler alega que pretendia fazer apenas uma homenagem ao deus Netuno, acredito que somente esta associação (apesar de viável) não se sustenta no contexto em que este inscreveu tal imagem.  Creio ainda que a justificativa apresentada pelo artista em relação à escolha do tridente foi apenas uma medida de auto-preservação.  Afirmo isso considerando a trajetória do artista, marcada por uma utilização dos códigos sociais de forma a colocá-los em uma situação de desajuste, provocando conflitos, a exemplo de trabalhos como o “Fé em Deus/Fé em Diabo” (2001) e “Base para unhas fracas” (2008).

“Fé em Deus/Fé em Diabo”, produzido pelo coletivo “Atrocidades Maravilhosas” formado por Alexandre Vogler, Roosivelt Pinheiro, Ducha, Rosana Ricalde, Felipe Barbosa, entre outros, constava de intervenções urbanas realizadas na cidade de São Paulo como parte da programação do Panorama da Arte Brasileira, em 2001.  O trabalho se constituía de uma série de cartazes lambe-lambe (serigrafia), cuja estruturação gráfica o artista se apropriou do logotipo da fábrica de velas “Fé em Deus”.  No entanto, ao invés de simplesmente repetir a imagem apropriada, ele produziu uma série “alterada”, na qual substituiu a frase “Fé em Deus” por “Fé em Diabo”.  Desta forma, ao intercalar os cartazes, o artista igualmente contrapõe personagens díspares, gerando um conflito em quem olha pela justaposição destas imagens.

Em “Base para unhas fracas”, exposição individual do artista realizada na Galeria Carminha Macedo (Belo Horizonte/MG) entre 14 de novembro e 13 de dezembro de 2008, Vogler faz “uso da linguagem da publicidade para revelar e até escrachar o funcionamento antiético dela”, como explica o próprio.  Além do material presente na mostra (vídeo, pintura, fotografia e escultura), Vogler ainda espalhou cartazes lambe-lambe pela cidade como forma de parodiar grosseiramente com as campanhas publicitárias, utilizando-se da imagem feminina a fim de alargar os padrões de aceitabilidade e bom senso utilizados nestas campanhas.

A partir destes dois exemplos da trajetória de Alexandre Vogler, é possível afirmar que o artista tinha conhecimento das conseqüências que o seu trabalho poderia causar.  A pretensão, com isso, não é criticar a postura do artista.  Ao contrário:  reafirma-se, neste sentido, a crença de que a postura do artista diante da repercussão do “Tridente de Nova Iguaçu” foi apenas um mecanismo de evitar possíveis transtornos jurídicos e atenuar a relação conflituosa que se estabeleceu entre a prefeitura do município, a Funarte e o artista.

No entanto, mesmo o artista se justificando com o tridente associado a Netuno ou a Exu, como forma de apaziguar os ânimos exaltados pela imagem maligna, tal tentativa é malograda tendo em vista que necessariamente a forma simbólica do tridente associado tanto a Netuno como a Exu perpassam o discurso do Diabo.  Há de se levar em conta que o tridente (como também suas articulações formais como o arpéu, o forcado e o garfo) na iconografia do Diabo, foi herdado do deus pagão Netuno e atribuído a Exu posteriormente no seu contato com o cristianismo.  Estes aspectos receberão tratamento mais especifico nos próximos tópicos.

A invenção do Diabo

“O Diabo com freqüência é meramente ‘o Outro’.”

ELIADE afirma que as sociedades arcaicas e tradicionais concebem o mundo que as cerca como um microcosmo.  Sendo assim, a partir dos limites últimos desse está o desconhecido.

“De um lado, existe um espaço cosmicizado, uma vez que habitado e organizado.  Do outro lado, fora desse espaço familiar, existe a região desconhecida e temível dos demônios, das larvas, dos mortos, dos estranhos – ou seja, o caos, a morte, a noite.”

E prossegue comentando a identificação que se estabelecia nestes casos dos adversários que atacavam o território nacional às larvas, aos demônios ou aos poderes do caos pelo fato de suas ações serem agentes pertubadores da ordem da vida do território habitado.  Os inimigos são, segundo ELIADE, identificados às forças demoníacas na medida em que tentam reintegrar esse microcosmo ao estado caótico, suprimindo-o.

“o simbolismo arcaico não encontra nenhuma dificuldade em identificar o inimigo humano ao Demônio ou à Morte.  Afinal, o resultado desses ataques, sejam eles demoníacos ou militares, é sempre o mesmo:  a ruína, a desintegração, a morte.”

NOGUEIRA, em seu estudo sobre o Diabo no imaginário cristão, afirma que “a cristianização da cultura européia traz consigo uma viragem decisiva para a história do imaginário”.  Indica que, a princípio, entre os hebreus primitivos não havia uma necessidade de corporificar uma entidade maligna, pois “para eles, jahveh era um deus tribal e, como tal, superior aos deuses das populações vizinhas, que se colocavam, assim como seus adversários e como expressões naturais da maldade, tornando supérflua qualquer encarnação suplementar do mal” .  Com a evolução de uma religião tribal em direção a um monoteísmo absoluto, o qual se caracteriza por uma única divindade Onipotente e Onipresente, O Criador de todas as coisas, pouco sobra para a atuação das forças do mal.  O esforço de se depositar toda confiança e poder nas mãos de uma única divindade se apresenta como um movimento de resistência, tendo em vista o politeísmo existente na antiga mesopotâmia.  Sendo assim, inclusive o mal também poderia provir de Deus como forma de punição ou de provação da fidelidade do seu povo eleito.  A figura de Satã funcionava mais como um promotor celestial que propriamente como um terreno a parte, oposto a Jahveh.

“Contudo, a nível popular, coexistem tradições antiqüíssimas, práticas mágicas, temores supersticiosos, sobrevivências das tradições orais que foram enriquecidas por novos acréscimos oriundos do contato com outros povos.

Esta superposição de crenças encontra-se claramente expressa na opinião que tinham os hebreus dos deuses estrangeiros.  Uns, seguindo a orientação monoteísta, não viam neles senão ídolos vãos, senão puras imaginações que buscam substituir a noção do verdadeiro Deus – o Deus de Israel.  Outros ainda presos a uma idéia tribal, assimilavam esses deuses aos espíritos das trevas.”

No entanto, segundo NOGUEIRA, a assimilação desses deuses adversários (ou melhor:  dos deuses protetores dos adversários) com os espíritos das trevas, tendo em vista os sucessivos conflitos e invasões da Palestina, é a que prevalece.  Afinal, como nos exemplifica o Salmo 95 (ou 96, dependendo da tradução) “todos os deuses das nações são demônios, mas o Senhor é o criador dos céus”.  Neste sentido, as guerras são estabelecidas não mais entre homens, mas entre deuses.  Nesta dinâmica, o deus vencedor submeterá todas as outras divindades ao seu domínio, subjugando seu povo e tomando posse do seu território.  Em contrapartida, o povo cujo deus foi vencido, numa dinâmica de resistência, inicia um processo de retaliação, colocando a responsabilidade de seus males no deus vencedor.

Com o advento do Cristianismo a dinâmica de resistência e incorporação do mal ao “outro-opressor” permanece.  No entanto, outros tormentos foram criados e impostos pelos cristãos aos demônios, os abatedores da Santa Igreja:  aos espíritos malignos se atribuem as dificuldades da vida material e espiritual.  Os demônios, ao mesmo tempo em que incitavam os romanos a perseguirem os cristãos, também teimavam em desviar da verdadeira fé, a cristandade, encaminhando seus fiéis a atos heréticos que os distanciassem do caminho da verdade e da vida.

Passados os três séculos de perseguição aos pregadores do Evangelho e com a imposição do Cristianismo como obrigação pelo Estado (já que este o declarava legítimo e oficial), os papéis se invertem e o paganismo, perseguido nas cidades, refugia-se no campo, lugar onde poderia ainda manter-se vivo em suas antigas superstições.  Há de se ter em mente que, longe de estar completamente vencido, as tradições pagãs permanecem infiltradas no imaginário da época.  Apesar da tentativa da Igreja de reduzir os deuses à condição de demônios, isso não significa a sua extinção do convívio social.  Ao contrário, persistiam crenças populares e costumes pagãos revestidos de uma aparência cristã.  Inclusive, festas dedicadas a antigas divindades foram adaptadas ao culto dos santos.

Numa dinâmica de apropriação e adaptação das formas pagãs como forma de dominá-las a partir da sua assimilação, os cristãos combatiam a prática pagã na justificativa da supremacia do seu Deus e, por conseqüência, da sua fé – tal qual na antiguidade, quando os deuses guerreavam e o deus vencedor se sobrepunha ao vencido.  Assim, duas tendências marcariam o Cristianismo por longo tempo.  Tendendo a aceitar os elementos da cultura clássica que impregnavam o imaginário popular, uma tendência com um viés conciliador buscava redimensionar esta tradição pagã a uma forma cristã.  Divindades, mitos, festas religiosas de origem pagã eram ocultados sob um costume cristão.  Inclusive o próprio tridente, atributo do Diabo, segundo LINK (1998), deriva de Posêidon (ou Netuno).  Sendo que o Diabo vai segurar o tridente pela primeira vez apenas no século IX.  LINK observa ainda que, com o tempo, o tridente se desdobra no arpéu (ou gancho forquilhado) quando o instrumento passa a ser utilizado em torturas de hereges e criminosos.

“Deu-se então um arpéu ao Diabo para sugerir sua cooperação com Deus na tortura dos condenados, o que implica que o principal papel não era o de adversário de Deus, mas de seu cúmplice.”

Numa posição diametralmente oposta, uma postura intransigente buscava acima de tudo abater e extinguir qualquer sobrevivência dos antigos cultos, através de uma propagação cada vez maior das heresias.  No entanto, não importava a postura adotada pelos cristãos:  mesmo com a Igreja aliada ao Estado, o exercício catequético era cada vez mais árduo, dado o malogrado projeto de conversão plena da Europa.  As consciências individuais, particulares, aliadas à persistência do simbolismo pagão se colocavam como um obstáculo difícil de ser transposto (ou disfarçado) pela Igreja.  O mundo vai sendo delineado pela igreja, marcadamente dividido em duas partes:  nós e os outros, o Bem e as virtudes e o Mal e os vícios.  Os servidores de Deus e os servos do Diabo.

LINK irá apontar que é no século IX que o Diabo aparecerá bem delineado, mas que somente no século XIV se constituirá na imagem tal qual a conhecemos hoje.  Mas a ascensão do Diabo e o aumento do seu domínio sobre os homens deve ser compreendido a partir do tecido social como um todo.  Robert MUCHEMBELD adverte que o isolamento da religião do discurso político leva a mutilação do sentido que esta desempenha no contexto histórico.  A sociedade, portanto, precisa ser apreciada como um todo orgânico.  Com isso, propício é citar a convergência de uma série de fatos ocorridos a partir do século XIV, de forma a elucidar o dramático período em que se deu a explosão de terror dos agente do mal.

“A crise geral do feudalismo e os seus desdobramentos:  a peste negra, que em 1348 atinge a Europa de modo devastador, as revoltas urbanas e camponesas que explodem de país em país, a interminável Guerra dos Cem Anos, o ameaçador avanço turco após as derrotas de Kossovo (1389) e Nicópolis (1396), o Grande Cisma – o escândalo dos escândalos – , as cruzadas contra os hussitas, a decadência moral do Papado e a Reforma Protestante, com todas as suas conseqüências, levam os homens atingidos por essa série interminável de tragédias e calamidades a buscar os porquês desse sofrimento monstruoso.”

Oportunizados por contexto tão favorável, novos e maiores terrores são inventados pelos teólogos numa empreitada de hipóteses explicativas das desgraças vividas.  MUCHEMBLED vê a invenção do diabo e do inferno não apenas como um fenômeno religioso, mas como um modelo radicalmente original de concepção unificadora, compartilhada pela Igreja e pelo Estado, numa forma inédita de controle social das populações.

“Nada seria mais falso que considerar a imagem do diabo como que gravada de maneira indelével na eternidade de uma natureza humana dividida entre o Bem e o Mal.  (…)  Um olhar distanciado pode evitar ser enganado pela definição universalista veiculada por nossa cultura, pois trata-se de uma construção imaginária datada, fundamental, sem dúvida, para a compreensão do que há de original no continente, mas relativa e estreitamente ligada ao juízo ocidental a respeito do mundo visível e invisível.”

Deus e o Diabo chegam nos trópicos

“Os europeus que colonizaram as Américas tinham em seu continente contato com ‘as bruxas’.  Esta experiência anterior de demonização do “outro” em seu continente vai ser decisiva no sentido de treinar o olhar dos europeus em relação aos habitantes na América.”

Tendo em vista o processo de colonização do Novo Mundo, VAINFAS e SOUZA (2002) esclarecem que o espírito da cruzada não esteve ausente do avanço luso para terras d’além-mar (inclusive levando em conta os primeiros nomes com os quais o Brasil foi batizado:  “Terra de Vera Cruz”, verdadeira cruz, e ,posteriormente, “Terra de Santa Cruz”).  O sentido religioso preenche a dinâmica colonial de modo que a conquista de território e a expansão do domínio do homem branco para “além mar” significa a ampliação do reino de Deus.  As missões religiosas se faziam necessárias e urgentes de modo a dar a conhecer a esta população ignorante as maravilhas da Boa Nova do Evangelho, e fazê-los renunciar a qualquer armadilha do Diabo.  Aos primeiros missionários era atribuído o papel de organizar, domesticar, pacificar os nativos, catequizando-os, de modo a extinguir os seus atos mais ofensivos à moral cristã (nudez, poligamia, antropofagia).  Meios de conversão eram necessários, e os fins os justificavam.

Na tentativa de tornar o Cristianismo acessível aos nativos brasis, de forma a adaptá-los à linguagem simbólica na qual estavam imersos, são dados os primeiros passos em direção ao sincretismo religioso em terras de Vera Cruz.  O grande caldo que vai se formar a partir do processo digestório (de apreensão, assimilação, síntese e, inclusive, excreção) dos símbolos impostos pelo homem branco evidencia o caráter ativo dos catequizados:  o movimento de resistência se torna evidente quando o branco não mais tem controle dos significados.  No entanto, logo os missionários diagnosticaram o terrível:  não apenas Deus havia acompanhado a missão ao Novo Mundo, mas,  o inimigo igualmente já se fazia presente por estas bandas.

E o problema da invasão de demônios se acentua com a generalização do trabalho escravo africano no Brasil, a partir do final do século XVI.  E o caldo cultural vai se tornando mais denso a partir de novos elementos na sua composição.  BELTING vai se referir ao processo de colonização como uma guerra de imagens, de forma que tal processo histórico é marcado pelo incêndio de conflitos internos do clero cristão no que dizia respeito à forma como deveriam tratar as imagens dos nativos.

“O Diabo passava a fazer parte do cotidiano colonial e Ele atuava tornando a natureza selvagem e incitando os moradores do continente americano à infidelidade ao cristianismo e também à ‘idolatria’.  O reconhecimento do ‘outro’ como idólatra e demoníaco conferia ao empreendimento colonial sua devida legitimidade.  O outro não é apenas o diferente, mas o adepto do adversário de Deus, logo é preciso exterminá-lo.”

E, tal qual com os indígenas, a verdadeira fé é imposta igualmente aos negros.  E o movimento de assimilação das divindades pagãs se repete:  novamente a apropriação e a interpretação se apresenta como ferramenta eficaz de dominação do outro.

E no clima abrasivo dos trópicos, em terras de Vera Cruz, os vários elementos espirituais são sincretizados, conjugando várias formas de discurso religioso.  Um dos resultados desta grande mistura é a Umbanda, para a qual convergem influências cristãs, espíritas, africanas, indígenas.  Ainda hoje, inclusive, mantém-se entre os umbandistas o sincretismo religioso com o catolicismo e os seus santos, assim como no antigo Candomblé dos escravos.  Correspondências hoje bastante disseminadas em nossa sociedade (como, por exemplo:  Ogum e São Jorge;  Oxóssi e São Sebastião;  Iemanjá e Nossa Senhora dos Navegantes;  Iansã e Santa Bárbara), a ponto das festas religiosas se tornarem uma comunhão de tradições.  E, como não poderia deixar de ser, a carapuça do Diabo logo achou um bode expiatório:  Exu, que por seu poder e agressão, sua sexualidade desenfreada e desinibição dos instintos, logo é visto como o causador da desordem, portanto, o Inimigo.  CUNHA afirma que “as representações plásticas de Exu assumiram uma grande ênfase, diversificando-se de modo extraordinário e crescente com a expansão da umbanda.”  E devido a assimilação com o Diabo Católico, sua iconografia também se modifica:  o tridente enquanto atributo de Exu é uma dessas modificações.  Sendo assim, o tridente vem se incorporar à divindade negra após o contato com o catolicismo.

Ainda hoje Exu é uma figura bastante presente nas invocações e nomeações dos demônios entre os cristãos, mais especificamente, nas igrejas pentecostais.  Alfredo dos Santos OLIVA levanta a hipótese de que esta visão demonizante do “outro”, da cultura religiosa do “outro”, pertence a uma herança do cristianismo antigo e medieval e desemboca no processo de colonização, ocasião em que as culturas indígenas e africanas foram identificadas pelos conquistadores religiosos seculares, como expressão demoníaca e inferior a sua.

Assim, ao Diabo se incorpora toda forma de dissidência religiosa, formas de culto periféricas ao cristianismo tradicional.  Inclusive a prática das igrejas protestantes pentecostais diferem em muito do Catolicismo Romano e do Protestantismo Tradicional, justamente pelas duas últimas formas de manifestação do cristianismo se tratarem de formas/discursos religiosos invadidos pela lógica científica.  Inclusive, a própria prática do exorcismo, por exemplo, bastante corrente nos cultos pentencostalistas, se trata de uma prática quase em “desuso” na Igreja Católica.  Desta forma, o protestantismo pentecostal:

“Não apenas recolheu de volta o discurso sobre o Diabo, mas passou a construí-lo como estratégia de combate à própria igreja católica (e à umbanda também!) ao demonizá-la e responsabilizá-la pela demonização das pessoas.”

Como outrora, o Diabo hoje é a explicação e conseqüência de todos os males que afetam a vida das pessoas.  A vida do convertido se divide em antes e depois de ter tido contato com o grupo religioso, tendo sido batizado e exorcizado de todos os males.  Tal qual no fim da Idade Média, com a crise que acometera a Europa devido a congruência de fatos, tal discurso ainda se afirma, sendo o Diabo um personagem oportuno para justificar a ocorrência de tantos males.  E na Baixada Fluminense, região da qual o município de Nova Iguaçu faz parte, tal prática discursiva encontra terreno propício.  O próprio termo “Baixada Fluminense” embute tanto noções geográficas quanto sociais características desta região.  Define geograficamente a região localizada entre o litoral e a Serra do Mar, no Estado do Rio de Janeiro, constituída por um relevo de baixas planícies, muitas delas inundáveis;  como também sua problemática conjuntura socioeconômica “baixa”.  A partir da década de 1970, considerando o crescente índice de violência urbana ocorridos na região, o termo passou a ser utilizado igualmente como indicador dos problemas estruturais de ordem social e econômica marcantes nesta região.

Vogler ainda afirma que, mesmo com todos os problemas enfrentados junto a grande parte da população e das representações políticas do município, grupos ligados ao candomblé e a umbanda lhe foram muito receptivos, inclusive dando apoio, já que para eles o tridente, mais que associado ao Diabo, é um atributo de Exu, ao qual temem e respeitam, fazendo dele objeto de culto.  Sendo assim, o tridente se colocou como uma homenagem a esta divindade.

Vogler ainda se mostrou intrigado com a situação criada pelo fato de que, segundo o artista, ao mesmo tempo em que no município o candomblé e a umbanda são muito perseguidos pelos protestantes pentecostais, ainda sim formam um grupo numeroso, mas que são formas de culto segregadas, quase que clandestinas naquela região.

A partir da explanação da invenção do Diabo pelo Ocidente e de sua transferência para o Brasil através do processo de colonização, pode-se concluir que a justificativa do artista pela imagem de Netuno e Exu, duplamente se insere no discurso do Diabo.  Se outrora o tridente de Netuno foi associado à iconografia do Diabo no primórdio do cristianismo, hoje, Exu é uma figura bastante presente nas invocações e nomeação dos demônios nas Igrejas Pentecostais.

PRANDI, ao tratar das estatísticas do participantes de cultos afro-brasileiros, e tomando como base o recenseamento de 2000, contabilizou que apenas 0,3% da população brasileira adulta declarara-se pertencente a uma das religiões afro-brasileiras, o que corresponde a pouco mais de 470 mil seguidores.  No entanto, outras fontes de pesquisas realizadas com uma metodologia mais precisa, indica uma porcentagem superior, com pelo menos o dobro de participantes.  Associa-se ao fato as circunstâncias históricas nas quais essas religiões surgiram no século XIX, quando então o catolicismo, enquanto religião oficial e fonte básica de legitimidade social, era a única forma de culto religioso tolerada no Brasil.  Ser católico, neste contexto, era questão de sobrevivência, resultando daí todo o movimento sincrético que aqui se estabeleceu, como forma de resistência ao culto oficial.

Ainda hoje, um seguidor do candomblé ou da umbanda pode, se quiser, freqüentar ritos da igreja católica, apesar de não ser obrigatória como na época da escravatura.  No entanto, tal “convivência” se torna inviável no caso das Igrejas Pentecostais.

Sobre a atuação de grupos protestantes, FRADE observa-os como um movimento subliminar de dominação.  Movimentos que se impõe com bastante força entre grupos populares, questão complicada para as diversas instâncias da sociedade reelaborar.  Até porque, tal qual o cristianismo medieval, esses grupos tendem a descaracterizar o povo através de sua história, de sua identidade, de sua tradição, tornando-o passível de dominação. A afirmativa de ordem é:  “ou está conosco, ou está contra nós.”

A cruz desconhecida pelos demônios

“Graças a Deus, pelo Diabo!”

Deus e o Diabo.  A história de um está intrinsecamente associada ao outro.

Alexandre Vogler, além das associações do tridente com Netuno e Exu, ainda cogitou a possibilidade do tridente como meramente um desdobramento formal da cruz.  Interessante possibilidade e que Jean CHEVALIER e Alain GHEERBRANT (2002) irão afirmar em seu dicionário de simbologias:

“A presença da cruz é visível na natureza.  O Homem de braços abertos simboliza a cruz.  O mesmo se pode dizer do vôo dos pássaros, do navio com seu mastro, dos instrumentos de arar a terra.  Assim, Justino, na sua Apologia (I, 55), enumera tudo o que contém a imagem da cruz.  A lista das cruces dissimulatae comporta o arado, a âncora, o tridente, o mastro do navio com sua verga, a cruz gamada etc.”

Será que nessa síntese pode-se vislumbrar o papel complementar de ambas as personagens, Deus e o Diabo?  Ora, numa perspectiva mais alargada, o Diabo faz-se mais que necessário!  Se outrora a figura de Deus onipotente herdada dos hebreus, do qual tudo provinha, inclusive o sofrimento como forma de punição do pecador, para os cristãos esta faceta de Deus se torna um tanto conflituosa.  O Diabo acaba por ser a faceta punitiva da divindade hebraica suprema, que não era mais aceitável.

Sendo assim, o Diabo seria realmente um oponente de Deus ou um grande colaborador para que sua infinita bondade seja manifesta?  Tal situação ainda se mostra conflituosa, inclusive, no interior da liturgia católica:  o Exultat, o canto de anúncio da páscoa proclamada pelos católicos na cerimônia de Vigília Pascal (rito de passagem que assinala a derrota de Cristo sobre a morte pela sua ressurreição, libertando todos os filhos de Deus do cativeiro no qual estavam encerrados desde a culpa original), assim narra o projeto de redenção do homem:

“Ó pecado de Adão, indispensável

pois o Cristo o dissolve em seu amor

Ó culpa tão feliz que há merecido

a graça de um tão grande Redentor.  (…)”

Uma verdadeira conspiração divina, destinada a levar o homem à Redenção.  Ou não seria a dar ao homem a conhecer a face bondosa de Deus?  LINK, ao traçar um percurso iconográfico do Diabo, verifica a dificuldade de um relato iconográfico continuum de um personagem possuidor de várias máscaras, mas cuja essência é uma “máscara sem rosto”.  A ausência de uma iconografia, de um continuum é útil, pois o Diabo sempre vai “assumir o rosto” do “outro-oponente”.  Sendo assim, o Diabo se torna uma ferramenta eficaz de preservação em relação a oposição e de colocar Deus do próprio lado.  No entanto, LINK considera que abordar a questão por apenas este ângulo pode ser demasiadamente simplista.  Levanta ainda uma segunda hipótese:  que apesar de muito ter se tentado indicar o Diabo como um símbolo do mal, na realidade ele não o é justamente porque não o pode ser:  “o Diabo trabalha para Deus.  Ele castiga os pecadores:  faz o trabalho de Deus  (…).  Ele leva o lixo para fora” .  Sendo assim, ele não pode se materializar em definitivo como um oponente de Deus.  Ele não poderia ser um judeu ou um herege na Idade Média, assim como ele não pode ser os umbandistas hoje.  Desta forma, “o Diabo só é mau segundo a definição de qualquer seita cristã em interesse próprio” .

NOGUEIRA, em seu estudo, destaca “a importância vital, para uma crença oficial, do papel desempenhado pelo Demônio e seus agentes, cuja atividade incorporava-se nos comportamentos divergentes e auxiliava a coletividade no reconhecimento e repúdio dos mesmos.  Era necessária para a coletividade cristã a existência e a encarnação do Mal.  Era preciso que fosse visto, tateado, tocado, para que o Bem surgisse como a graça suprema – o Belo e o Divino, em oposição ao Horrível e Demoníaco.”

Robert MUCHEMBLED, define o imaginário coletivo como um fenômeno bastante real, uma resultante dos vários canais culturais que irrigam uma sociedade. Ao contrário do que a Igreja tentara achatar, este imaginário é vivo e não necessariamente homogêneo.  Como uma rede de canalizações invisíveis irrigando o mesmo conjunto, a influência pode vir de diversos pontos, o que inclui igualmente os movimentos de resistência e contra-cultura.  Esse imaginário tece e entretece redes relacionais de poderosos símbolos e práticas discursivas, “que endurecem o cimento coletivo, unindo o indivíduo ao todo, do berço ao túmulo”.  O Diabo, como prática discursiva, se apresenta como uma tentativa singular de dar coesão a uma Europa tão díspare, como o era na Idade Média.  Tal dinâmica pode ser compreendida no âmbito do Brasil Colônia, onde era necessário marcar a unidade do discurso colonial como forma de evitar a morte de uma cultura anterior e verdadeira.