A intermedialidade no trabalho de Alexandre Vogler e a arte da performance

 

Recentemente, uma reportagem publicada no jornal O Globo, no suplemento Segundo Caderno[1], chamou atenção pelo conteúdo inusitado, envolvendo o recente e ousado trabalho do professor do Instituto de Artes da Uerj Alexandre Vogler e a reação de pessoas comuns, ao se depararem com o produto exposto pelo artista, em muros espalhados pela cidade. Não se tratava de nenhum cartaz, induzindo a sociedade a consumir absolutamente nada. Era obra de arte exposta como se estivesse dentro de uma galeria de arte.


Um grande cartaz enquadra as mãos de uma mulher e suas enormes unhas vermelhas cobrindo parte de sua genitália. Digo parte, porque as mãos da tal mulher não encobrem totalmente sua vagina, tornando-a visível somente ao transeunte atento que passa e olha detalhadamente o cartaz. Na parte inferior do canto direito da obra, um vidro de esmalte e, logo em seguida, a frase “Base para unhas fracas”. No momento em que posava para fotos em frente à sua criação, uma senhora – que mora num apartamento em frente ao malfadado muro – aparece à janela do prédio e reclama daquela imagem profana a qual terá que se deparar todos os dias. Em discussão com Alexandre – este tenta em vão convencer à moradora de que a provocação faz parte do processo de sua obra – ela sentencia e afirma categoricamente que ele precisava estudar arte, abominando sua criação.


Segundo Alexandre Vogler, a interferência do público à sua obra se faz sentir pela negatividade de sua recepção, pois as imagens das vaginas coladas e espalhadas pela cidade são rasgadas e, segundo a matéria, alguns profissionais que colavam nos muros os cartazes já foram ameaçados pela polícia.


Este tipo de intervenção urbana, onde o objetivo principal é desestabilizar, interferir na rotina de moradores ou de toda uma população, perturbando-lhes seu centro norteador (como mostra o vídeo intitulado Atrocidade Grande, parte 3, representativo desta compreensão de performance) aproxima-se de um consenso a ser atingido por todos aqueles que dedicam-se ao aprimoramento deste procedimento artístico. Para o entendimento sobre o que significa esta arte tão complexa e, ao mesmo tempo, geradora de opiniões diversas, é necessário aprofundar os seus conceitos básicos, para concluir com as associações desejadas, o diálogo entre o mais novo trabalho exposto pelo professor de artes da Uerj com a idéia de performance.


Hans-Thyes Lehmann, combinando teatro e desempenho, afirma que “a imediatidade de toda uma experiência compartilhada por artistas e público se encontra no centro da arte performática (…) Duração, instantaneidade, simultaneidade e irrepetibilidade se tornam experiências temporais em uma arte que não mais se limita a apresentar resultado final de sua criação secreta, mas passa a valorizar o processo-tempo da constituição de imagens como um procedimento teatral” (Lehmann: 2007, 223-224).


Alexandre Vogler, neste trabalho específico da colagem sobre os murais, não expõe o próprio corpo, não trabalha seu corpo como mero objeto artístico, não experimenta quantas possibilidades pode alcançar com ele. A presentificação do artista, necessária para que o ‘aqui-e-agora’ imediato possa acontecer, também não ocorre, visto que o próprio Vogler não pode estar presente em todos os lugares onde o cartaz está colado ao mesmo tempo. Citando o sociólogo Henry-Pierre Jeudy, “o desafio do artista é mostrar, não somente do que o corpo é capaz, mas, sobretudo, do que ele ainda pode, para além das exibições já realizadas” (Jeudy: 2002, 112).


Porém, o resultado de sua obra possui um caráter intrinsecamente provocativo. A pergunta da moradora ao artista, sobre se o cartaz colado naquele muro pode ser considerado arte, circunda todos os debates envolvendo a prática pós-dramática, principalmente a performance. Interessaria se perguntássemos qual é a primeira idéia que vem à cabeça de um desconhecido ao se deparar com aquela imagem. Segundo declarações do autor, as motivações são de ordem política. Discute-se, neste trabalho, a utilização do corpo feminino como grande fetiche para vender marcas diversas. Um exemplo bem definido por todos são da maioria das marcas de cerveja, onde as expõem em maior grau. Para o grande público, leigo nos assuntos artísticos, pode-se questionar o que o autor gostaria de indagar com aquela visualidade rubra contida nas unhas que cobrem a vagina manipulada digitalmente, já que não há nenhuma exaltação a logotipo, à marca que remeta a uma empresa de cosméticos, algo que possamos decodificar como verdadeiramente publicitário. Tal imagem pode suscitar diversas reações em diferentes pessoas, sem que haja necessariamente a obrigação de um raciocínio único, a não ser o de choque quando o sexo feminino é reconhecido na foto pelos que trafegam nas ruas. Segundo Lehmann, “a tarefa do espectador deixa de ser a reconstrução mental, a recriação e a paciente reprodução da imagem fixada; ele deve agora mobilizar sua própria capacidade de reação e vivencia, a fim de realizar a participação no processo que lhe é oferecida” (Lehmann: 2007, 224).


Alexandre Vogler rejeita o espaço sagrado de um museu ou de uma sala de exposição, onde com certeza ela estaria protegida e longe do alcance da fúria dos mais puritanos. Elege as ruas para sua vernissage e reage com naturalidade aos ímpetos dos que discordam de tamanha exacerbação sexual.


Uma dose de “ausência de limite” impulsiona, de certa maneira, a forma como o autor da obra expõe o órgão sexual feminino. Segundo Vogler, “se a mulher é usada por todas as campanhas, eu ponho o conteúdo sexista dessas mensagens no grau mais avançado. Poderia usar uma imagem mais tolerável, mas seria chover no molhado”. Ele, ao mesmo tempo em que esconde, deixa à mostra partes de um órgão que, segundo as regras da moral e da boa conduta, não devem ser mostradas. O corpo feminino tão fetichizado, aqui, é levado às últimas conseqüências.


Atualmente, uma obra de arte é considerada como pós-moderna, ou contemporânea, devido ao grau de interferência do público em sua criação. Ou seja, quanto mais a obra é aberta e acata as possíveis intervenções da platéia, estejamos num teatro, ou numa instalação, caso estivermos nos referindo a uma exposição de arte, a experiência e a sensação, para muitos, será sempre diferente de todos os que lá estavam. A contemplação deu lugar à participação.


Neste artigo, foi possível identificar o quanto de performático caracteriza este novo trabalho de Alexandre Vogler, o quanto ele é questionador e o quanto sua obra causa incomodo nas pessoas, interferindo em seus cotidianos. Segundo fontes da reportagem, não é a primeira vez que o interventor cria polêmica com suas criações na ordem urbana. Na cidade de Nova Iguaçu, Vogler figurou um enorme tridente próximo a uma igreja evangélica e a um cruzeiro, causando a ira de protestantes e católicos, que organizaram diversas manifestações de desagravo ao artista.


No site pessoal de Alexandre http://www.alexandrevogler.com.br/ o internatua que estiver interessado em conhecer suas criações, não pode deixar de assistir as três partes do vídeo Atrocidade Grande, documentário gerado a partir de intervenções ocorridos na cidade de São Paulo, dentro da Mostra Panorama da Arte Brasileira, no ano de 2001, além de conferir as fotos e outras imagens de seu trabalho.


Bibliografia
JEUDY, Henry-Pierre. O corpo como objeto de arte. São Paulo: Editora Estação Liberdade, 2002.
LEHMANN, Hans-Thyes. Teatro pós-dramático. São Paulo: Editora Cosac Naify, 2007.

[1] VELASCO, Suzana. As unhas vermelhas mais chamativas do Rio. Segundo Caderno, O Globo, 27/06/2008, p. 5.