Atrocidades Maravilhosas: ação independente de arte no contexto público

Alexandre Vogler

Partindo do relato do Projeto Atrocidades Maravilhosas de Intervenção Urbana, o texto aponta considerações sobre a cidade como campo de experiências e suas implicações frente a uma proposta de arte pública.

No início de abril de 2000 o Rio de Janeiro abrigou uma série de “atrocidades” realizada por um grupo de 20 artistas que, com milhares de cartazes lambe-lambe,1 tomaram pontos estratégicos da Cidade Maravilhosa. Esse “assalto” surgiu como desdobramento do projeto de pesquisa “Colabore para a boa operação do transporte coletivo”, de minha autoria para o Mestrado de Linguagens Visuais, em que investigava, entre outras coisas, a apreensão visual da imagem repetida sobre o prisma da velocidade, ou seja, mediante o espectador em movimento.

Diante de questões que tocam tal pensamento – escala, arte fora do circuito e intervenção num contexto de paisagem –, resolvi tornar coletiva essa ação reunindo artistas para atuarem segundo as estratégias da mídia lambe-lambe: criar imagens para serem reproduzidas em grande formato e com tiragem de 250 cópias, e eleger um local específico de aplicação dos cartazes, o que tornaria indissociável seu conteúdo e as relações com seu entorno. Recorria, com isso, a uma atitude política de se fazer arte independente dos muros das instituições, pensada para questiona e alterar a paisagem urbana.

O trabalho durou aproximadamente um ano, sendo todo realizado pelos próprios artistas, desde a revelação e impressão das imagens em serigrafia, produzidas no Atelier 491 e Fundição Progresso respectivamente, até a colagem nos muros da cidade. Verificou-se, então, um comprometimento mais do que estritamente profissional, já que a isso levaram as próprias circunstâncias do trabalho, executado à custa do esforço coletivo, diante da falta de qualquer apoio institucional. Tudo isso ratificou nossa convicção no trabalho que estava sendo executado, pois sua apresentação não se prestando à chamada linhagem de iniciados (público de museus e galerias), era de esperar que nenhuma dessas instituições abrigasse, de alguma maneira, sua produção.

As colagens eram realizadas sempre de madrugada e duraram, em sua maior parte, quatro dias seguidos (tudo da forma mais rápida, uma vez que tal procedimento de colagem de cartazes é ilegal e sujeito a multa). Executado por nunca menos de 10, além de Careca e Moreno (profissionais empreitados), a estratégia residia na sagacidade da ação.

Na maioria dos casos, os cartazes eram colados em tapumes e muros de grande extensão situados em locais de grande fluxo de pessoas: Av. Brasil, Av. Presidente Vargas, Av. Vinte e Quatro de Maio, área portuária, etc. A completa aplicação dos 250 cartazes de cada artista, em seu respectivo local, formava um painel de 120 metros da mesma imagem repetida, pronta para ser consumida pelos pedestres em trânsito contínuo. A totalidade dos cartazes colados chegou ao número de 5000, dispostos em toda  zona metropolitana do Rio de Janeiro.

Apesar de o trabalho lidar diretamente com a problemática institucional da arte, não julgo ter sido esse o motivo formador da iniciativa. Até porque o próprio ato de negar essa situação o leva para o mesmo discurso institucional (ainda que negando, toca-se o mesmo assunto). Preocupava-me, antes, resolver certos aspectos ligados à abrangência do trabalho de arte, ou seja, torná-lo visível. Me passava pela cabeça a possibilidade de em dois minutos de “exposição” o trabalho ter o equivalente à média mensal de visitantes num espaço de grande porte. Melhor ainda era o fato de tornar dispensável essa ruidosa pré-disposição do espectador em encontrar um “trabalho de arte” num “espaço de arte”.

A circunstância de o trabalho apresentar-se camuflado na paisagem dota-o de um certo “conteúdo virótico” capaz de instaurar uma reflexão efetiva no pedestre descuidado. Toma-se de assalto o espectador, desarmado dos paradigmas da arte, instaurando, pelas próprias condições da obra, a ausência de qualquer conteúdo autoral.

A forma como a linguagem de consumo foi apropriada oculta uma certa autoridade da arte, possibilitando sua leitura como publicidade, design, e leva a arte em direção ao cotidiano, ao utilitário, ao não artístico. Esse pensamento tangencia o conceito de obra achada, abordado por Hélio Oiticica, que o identifica como posição ideal de uma obra. Aqui, nas Atrocidades, não mais consumida como obra perdida (como pensou HO), mas como uma coisa que levanta suspeitas. Nada, ali presente, a legitima como obra, podendo passar despercebida ou adulterada pelo contexto em que é exibida – o espaço público. O lambe-lambe Não ao trabalho, de Adriano Melhen, que reproduz a legenda desse quadro de Gauguin, pode ter passado para muitos como uma iniciativa anárquica e política, intenção não descartada pelo artista, apesar de seu franco diálogo com a instituição. Esse campo aberto de atuações e entendimentos possíveis acompanha muitos dos cartazes apresentados e conduz o espectador a uma postura de hesitação frente à possibilidade de ser aquilo um trabalho de arte ou mais uma campanha publicitária. A leitura leva à compreensão de que algo errado ou estranho há naquele anúncio. Nesse momento a subversão se apresenta e conduz o transeunte ao choque, como em meu trabalho O que os detergentes fazem com as mãos de uma mulher, em que uma mulher, com unhas muito bem feitas, posa para um comercial de esmalte abrindo sua xoxota; ou mesmo quando uma grande carreira de cocaína acompanha um logotipo não da Coca-Cola, mas da Coca-Coca, de autoria de Ducha. Como na obra achada, acha-se ou não se acha, nunca se procura. Extingue-se a obrigatoriedade de existência de um sentido por ser aquilo uma obra de arte, simplesmente porque aquilo pode não ser uma obra de arte.

Tal proceder questiona muitas das considerações difundidas no meio da arte, pois, num universo em que se propaga a fusão cada vez mais ampla de arte e vida, qual o sentido de se categorizar uma peregrinação, um cartaz lambe-lambe ou um grafite como arte, uma vez que eles podem ser simplesmente entendidos como peregrinação, cartaz lambe-lambe e grafite?   

Sendo assim, afirmo que pouco ou nada interessa a discussão categórica de situar as Atrocidades como trabalho de arte; antes de tudo gostaria de situá-lo mais como um procedimento de lambe-lambe. Da mesmo forma não me inibe o fato de apresentar seu relato numa revista de arte, por considerar que todas as estratégias usadas, atuadas em conformidade com as formas populares de ordenação visual e fruto uma cultura visual participativa, vão justificar todo e qualquer procedimento artístico efetivamente popular. Tal como Léger disse acerca de “formas mais sociais de expressão, da criatividade popular na arte espontânea dos comerciantes (as vitrines), nas ruas, no espetáculo que a sociedade oferece a si mesma; nesses homens aí (…), nesses artesãos, existe um conceito incontestável, ligado ao objetivo comercial, um fato plástico de ordem nova e equivalente às manifestações artísticas existentes, quaisquer que elas sejam”.2 Algumas décadas depois percebemos os mesmos questionamentos no ensaio Learning from Las Vegas, de Venturi, Scott Brown e Izemor, publicado em 72 ao “insistir que os arquitetos tenham mais a aprender com o estudo de paisagens populares e comerciais (como dos subúrbios e locais de concentração de comércio) do que com a busca de ideais abstratos, teóricos e doutrinários”.3

A intenção com que todo o material foi produzido, margeado pela tomada de posição de um grupo, refletia essa opção pelo procedimento lambe-lambe e suas implicações publicitárias. Digo isso não distanciando do proceder artístico, mas, ao contrário, condicionando todo e qualquer cartaz lambe-lambe a uma experiência visual, que, se não confirma um fim reflexivo que a arte exige, pelo menos instaura uma cultura visual de conseqüências sem volta frente ao problema artístico.

Cidade como campo de experiências

Passado um ano após sua realização, mais do que a um relato, atenho-me a uma reflexão crítica do projeto e de suas conclusões frente a uma pretensa alteração da cidade enquanto paisagem.

Todo o trabalho partiu do conceito de cidade como campo de experiências, em que se instaura uma nova lógica perceptiva tanto de percurso do espectador-pedestre quanto da situação das imagens enquanto perfurador da ordem planar instituída pelo urbanismo moderno. Tal situação deflagra o que chamo de paisagem imagética, processada nas cidades com o acúmulo e disseminação de imagens em cartazes e outros meios de veiculação publicitária, suscitando no homem contemporâneo a possibilidade de entrever planos que se sucedem (ainda que virtualmente), sendo essa prática necessária ao conceito de paisagem

Outdoors, cartazes lambe-lambe, painéis eletrônicos, plotagens monumentais e back-lights contribuíram quantitativamente como os maiores agentes formadores da paisagem imagética instituída em nosso meio, alterando o labirinto de concreto em que se transformaram as cidades, furando suas paredes e propiciando o abandonado ato de entrever (quase como uma saudade da paisagem), tão reclamado pela representação clássica. Tais meios, independente de seu fim econômico, contribuem para a formação de uma visualidade contemporânea no ambiente estudado e de forma alguma devem ser descartados se nos ativermos a precisar suas propriedades e potencialidades.

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A partir de tal tipologia, aponto, com as Atrocidades, formas de atuação justamente por acreditar que o crescente da imagem plana, ainda que prescrita sob a forma publicitária, decorreu de uma situação adversa pela qual passa a paisagem no meio urbano, instaurada antes por agentes econômicos do que por um planejamento racional de convívio. Tais agentes (corporações, empreiteiras, construtoras), travestidos de estado, deflagram uma situação autoritária e transformam a cidade em “espaço de representação do capital e do poder, em que o cidadão se vê submetido a um sem fim de controles e pressões frente uma aparência de permissividade e tolerância”.4 Com isso, penso que o trabalho de arte num âmbito público fala a respeito de um espaço de conflito contínuo que vem reforçar a emancipação do cidadão diante dos sistemas de dominação cultural e política.

Nesse sentido o exemplo mais significativo em nossa ação foi o trabalho apresentado por João Ferraz na Av. Presidente Vargas, onde foram colados 100 cartazes com a inscrição público sobre o mesmo número de tampas de privada pregadas no muro. A própria literalidade do objeto emergia como um baixo-relevo sobre a superfície inscrita, endossando questões significativas sobre a cidade e sua estrutura. Processo semelhante utiliza Arthur Leandro quando expõe a imagem de seu cú, margeado pela inscrição “círculo / privado / esfera / pública”, em plena rampa de acesso ao estádio do Maracanã, nesse caso confrontando uma situação de intimidade e sua exposição pública.

Outras questões abordavam a situação da metrópole, como a perspectiva do espectador em trânsito e a leitura que este realiza como forma de decodificação da imagem pública, recorrendo ainda a procedimentos de equivalência entre a leitura da imagem estática e o percurso corpóreo que conduz à percepção numa situação espacial. Tais propriedades inibem uma atitude contemplativa em benefício de um exercício conclusivo, decifratório e condicionado por uma qualidade temporal necessária à rápida fruição que se estabelece na apreensão das imagens na paisagem urbana. O cartaz idealizado por Felipe Barbosa, levou às últimas conseqüências a condição do espectador em movimento. Simulava a consciência da imagem animada com a reprodução de três posições da corrida de uma ema. Em vez do espectador parado diante de uma imagem em movimento (como no cinema), induz sua animação com o espectador em trânsito ao longo de uma ordem subseqüente de três imagens estáticas.

Como no trabalho de Felipe, o pressuposto do espectador em deslocamento era uma condição recorrente em todas as propostas; e assim foi no muro da linha férrea no Méier, na Av. Brasil, na Av. Pasteur e em outros 17 lugares em que se encontravam Atrocidades Maravilhosas, em sua maioria engolidas rapidamente pelo processo entrópico das cidades, que a tudo consome. Concluiu-se que a cidade, enquanto organismo, devora toda ação independente instaurada. Por outro lado, contabilizávamos todo processo entrópico como fato e dado do trabalho, desde sua rápida destruição (como o outdoor dos “detergentes”, rasgado por policiais) até seu gradual desaparecimento provocado por processos de sobreposição e colagem de novos cartazes.

Tal procedimento de intervenção urbana prossegue, atualmente em um tapume na esquina da Rua da Lapa com Ladeira de Santa Teresa. Lá, regularmente, desde o início de 2001 o TAPUME é apropriado por cartazes lambe-lambe produzidos pelo grupo e por artistas convidados a intervir naquele espaço específico.

Relação dos artistas participantes e seus respectivos locais de atuação

Adriano Melhen/Cinelândia, Alexandre Vogler/Av. Brasil, Ana Paula Cardoso/Av. Maracanã, André Amaral/Av. Rui Barbosa, Arthur Leandro/passarela de acesso ao estádio do Maracanã, Bruno Lins/Largo do Machado, Clara Zúñiga/Av. Vinte e Quatro de Maio, Cláudia Leão/Zona Portuária, Ducha/Av. Gomes Freire, Edson Barrus/orelhões da cidade, Felipe Barbosa/Av. Perimetral, Geraldo Marcolini/Zona Portuária, Guga/Av. Presidente Vargas, João Ferraz/Av. Presidente Vargas, Leonardo Tepedino/Túnel Velho, Luís Andrade/mergulhão da Av. Pasteur, Marcos Abreu/Av. Presidente Vargas, Ronald Duarte/parede externa da Fundição Progresso, Rosana Ricalde/muro da Faculdade Hélio Alonso, Roosivelt Pinheiro/Rua Joaquim Murtinho

Notas

1 Cartazes de conteúdo publicitário produzidos em larga para divulgação de espetáculos . São  colados em tapumes  e em locais de grande circulação de pedestres. Dá-se esse nome devido ao procedimento de colagem, em que o cartaz é todo lambuzado, atrás e na frente, com cola de fécula de mandioca.

2 Léger, Fernand. Citado por Stephane Hunchet in: Gávea 11, Revista de História da Arte e Arquitetura. PUC/RJ

3 Citado por David Harvey em Condição Pós-Moderna: São Paulo: Edições Loyola

4 Lapiz, Revista Internacional de Arte, Espanha.