Entre a cruz e o tridente: espertezas simbólicas 

Mônica Linhares

Mestranda do Instituto de Artes da UERJ

Resumo

Utilizando artimanhas da mídia, a intervenção urbana “Tridente de NI” de Alexandre Vogler, 2006, acionou redes sociais distintas e subverteu alianças políticas. Produzindo um portentoso tridente pintado em cal sobre a encosta do Mirante do Cruzeiro em Nova Iguaçu , imediatamente atrás da cruz já existente. Ao serem tomados pelo flagrante da fruição da obra e impossibilitados de conceber uma conciliação simbólica, religiosos, artista, políticos, ecologistas, além da própria população, iniciam um insidioso debate acerca das propriedades morais do tridente ao lado da cruz. Classificando o ocorrido como um fenômeno típico de pseudomorfose, termo de Erwin Panofsky (1964), são avaliados os processos apropriação simbólica e artística.

Abstract

Using tools and tricks from the media, Alexandre Vogler’s urban intervention “NI’s Trident”, 2006, brought to motion different social networks and subverted political alliances. Using lime, he produced a might trident on the hillside of Cruzeiro belvedere, in Nova Iguaçu, above the cross existing in the place. Caught by the sighting of it and unable of conceiving such symbolic conciliation, religious people, artists, politicians, ecologists along with the rest of the population start an insidious debate about the moral properties of such combination of symbols, trident and cross. Classifying the happening as a typical pseudomorphose phenomena, Erwin Panofsky term (1964), the symbolical and artistic appropriation are assessed.   

Intervenção urbana – Mídias táticas – arte e política

Numa manhã de domingo, em meados de agosto de 2006, a população da Baixada Fluminense, no Rio de Janeiro, foi tomada de susto quando percebeu, na encosta do morro da Serra do Vulcão, imediatamente atrás do Mirante do Cruzeiro, próximo ao Centro de Nova Iguaçu, um enorme tridente desenhado a cal branca em contraste com a cruz já existente. Esta, situada no mirante, faz parte da paisagem urbana do Centro de Nova Iguaçu e de alguns bairros vizinhos, todos na Baixada Fluminense. Moradores sentiram-se afrontados pelo símbolo, oriundo de oficinas de intervenção urbana promovidas pela Prefeitura. A obra intitulada “Tridente (I love NI)”, foi realizada pelo artista Alexandre Vogler. 

O Jornal Meia Hora, administrado pela comunidade evangélica, também em Nova Iguaçu, produziu uma série de três reportagens associando o tridente á imagem do diabo e provocou uma verdadeira celeuma em torno da obra, acionando redes sociais distintas. O prefeito, Lindbergh Farias, diante do conjunto de acontecimentos e temendo perder grande parte de seu eleitorado, mandou funcionários da Prefeitura até o local para tentar, em vão, apagar o tridente. Participou de orações coletivas com representantes das igrejas católica e evangélica, distribuiu inclusive uma nota para o jornal O dia: “Faremos uma cruz com plantas e ela será iluminada para todos entenderem que sou do bem”. No final das contas e dias depois, o tridente foi lavado da encosta pelas intensas chuvas que abateram a cidade.

Em uma declaração ao mesmo jornal, Alexandre Vogler protestou contra a recriminação (que ele chama de censura) imposta ao seu trabalho, alegando que a arte deva provocar reflexões. Afirmou, também, que apesar de ter feito o tridente de Netuno, depois de pronto, passou a enxergar nele uma possível relação com as religiões afro-brasileiras. Citou outras inscrições religiosas espalhadas pela cidade que não receberam o mesmo tratamento negativo da Prefeitura.

Utilizando a cultura visual das cidades como matéria-prima e suporte, Alexandre Vogler encontrou nos meios de comunicação um contato mais direto com o público. O teor polêmico é uma das táticas de alcance ao público externo aos circuitos da arte. Questões ligadas ao consumo, à imagem da mulher e à política, são processadas em intervenções urbanas mesclando o lúdico, o sociológico e o documental. 

Em outro trabalho, de 2009, não menos polêmico, o artista apropriou-se dos muros e dos outdoors, potencializando uma leitura publicitária ao seu trabalho, imprimiu a imagem das mãos de uma mulher casada, de unhas pintadas em vermelho, cobrindo parcialmente o órgão sexual feminino, sustentando um vidro de esmalte sem rótulo, contendo ao lado, o sugestivo “Base para unhas fracas”. A proposta era estimular a discussão sobre as artimanhas publicitárias acerca da fetichização da mulher.

O caráter flutuante da forma e do conteúdo no trabalho de Vogler deságua no site da internet, como registro permanente das imagens do trabalho. Apropria-se da linguagem visual da rede digital, utilizando formato similar ao site líder no setor de vídeos online – o YouTube. O artista declarou ainda “Minhas referências estão na comunicação de massa, na televisão, na forma como a imagem circula, na redundância da imagem da cidade, o lambe-lambe, o outdoor…”.

Ao expor o “Tridente de NI” no site faz um recorte das reportagens em quatro links: Cruz vs Tridente; Oração vs Tridente; Religiosos vs Tridente e Tridente na Capa. Interessante observar como a escolha das imagens, assim como os títulos dos links relacionados, potencializam o conflito entre a cruz, o tridente e os religiosos. A imagem Religiosos vs Tridente faz um recorte minucioso do ato fervoroso das orações contra o Tridente, e tem o prefeito ao fundo. Na última imagem da seqüência, não por acaso, consta o Tridente triunfante na capa do jornal evangélico.

Em cada uma das propostas, o artista transforma o território urbano da cidade em suporte onde transitam suas intervenções utilizando os mesmos mecanismos de publicidade em larga escala, procurando um diálogo com um público mais amplo, para além das esferas e circuitos da arte. O produto final da polêmica, seja através de intervenções do público nas suas obras ou das notícias de jornal impresso ou televisionado, funcionarão como dinamizadores do trabalho, servindo como matéria-prima disponível à conveniência do artista. Essa mesma lógica foi observada no “Tridente de NI”, embora sua idéia inicial tenha sido outra.

Alexandre Vogler nos revelou que ao ser convidado pela Funarte e pela Secretaria de Cultura da Prefeitura de Nova Iguaçu para o projeto anual de oficinas e arte pública pensou em escrever “I love Nova Iguaçu” na forma parodiada de New York “I ♥ NY”, porém substituindo o y pelo i – “I ♥ NI”. O objetivo era propor uma reflexão sobre cooptação e consumo – os próprios moradores denominam a cidade de New Iguasu. A instalação teria aproximadamente 150 metros de gambiarras e lâmpadas na encosta do Morro do Cruzeiro. O projeto foi aceito, porém a Prefeitura não pediu um orçamento, como é de praxe, e ainda contratou uma produtora sediada no Rio de Janeiro, que não conhecia a cidade. Mais adiante, faltando apenas três dias para a montagem da instalação, informaram que não haveria verba suficiente e que seria necessário mudar o projeto.

O “plano B” seria utilizar o desenho do “Olho grande” com cal na encosta do morro. Foi calculada a quantidade de cal para dar visibilidade ao desenho na paisagem urbana da Baixada. Ele lembra ainda que no dia marcado para o evento, a Prefeitura não tinha feito qualquer divulgação: havia vários pacotes fechados contendo os folhetos publicitários. Como resultado, além da oficina ter sido um fracasso, a população não tomou conhecimento de que aconteceria naquele dia aquela intervenção artística. Apareceram apenas três pessoas, que acabaram se envolvendo na produção da obra. Quando chegou a cal, mandaram em muito menor quantidade do que a solicitada. Parecia haver um descaso da Prefeitura e da Secretaria de Cultura com o que estava acontecendo, tanto que no dia, o secretário de Cultura estava ausente da cidade, por motivos pessoais.

Alexandre Vogler conta que, ao chegar à ladeira do mirante e olhar a subida da encosta, juntamente com os três participantes da oficina, percebeu que não tinham como subir a ladeira a pé carregando aquela quantidade de cal. Solicitaram um burro à produção, porém receberam apenas uma égua prenha, como lembra o próprio artista, a seguir.

O cara [dono do animal] quando olhou a quantidade de cal e a pirambeira, se mandou e nem falou conosco. Já estava quase invalidando o projeto quando encontramos um cara esquisito que disse que subiria tudo por dez reais. Acabei pagando oitenta para um grupo de pessoas que se dispuseram. Porém, ainda faltava pensar o desenho e acabei seguindo o caminho da articulação formal. Eu tinha a encosta e queria articular com a questão da tela e o pincel, sendo a encosta o meu suporte e iria pintar com o cal. Queria dialogar com a cruz – que é enorme. Nas fotos você vê pequeno, mas de perto é uma enormidade. Então o desenho precisava ter um tamanho equivalente. Pensei em articular com a verticalidade e horizontalidade da cruz. Pensei em fazer uma grande sombra se projetando em perspectiva. Pensei em colocá-la de cabeça para baixo. Tive a idéia de colocar um tridente com querosene e colocar fogo – para ter a visualidade durante a noite – já que a idéia inicial era trabalhar com luzes. O pessoal da Secretaria disse que achava melhor não utilizar o fogo, pois iria acarretar problemas com ecologistas. O que comprova, que ao contrário do que a Secretaria alegou nos jornais, eles estavam por dentro de todo o projeto dialogando essas questões.

Vamos encontrar na Baixada um grande número de igrejas universais, pentecostais, evangélicas, messiânicas e católicas, entre centros espíritas kardecistas e casas de umbanda, além de ser endereço da maioria das casas tradicionais de candomblé.

A partir desse quadro podemos concluir que, apesar de a Baixada Fluminense apresentar uma sociedade heterogênea, complexa e diversificada em termos étnicos, econômicos e culturais, destaca-se também nesse território a grande influência das religiões afro-descendentes.

O palco de nosso objeto de estudo fica localizado no esquecido bairro de São João, numa subida íngreme do Centro de Nova Iguaçu até o Cruzeiro. As ruas que vêm do Centro e dão acesso à ladeira mantêm um contraste de ordem econômica com a rua de maior proximidade do Cruzeiro, que tem um asfaltamento irregular, sem pinturas laterais, como seria de praxe, e calçamento somente em parte da subida, ladeada por casas de tijolos aparentes e algumas construções abandonadas.

O cruzeiro, no mirante, tem uma base, uma espécie de patamar, onde está apoiado, de uns dois metros de altura aproximadamente, com acesso pela terra. Não há escadas. A cruz em si chega a ter uns três metros de altura e dois metros de largura, também aproximados. O asfalto termina numa curva depois do cruzeiro. O local é bem alto e dá para ter uma visão privilegiada de parte da Baixada: o Centro de Nova Iguaçu, atravessado pela linha do trem; a fachada da Catedral de Santo Antônio de Jacutinga (1862). O cemitério fica logo atrás.

O conceito de monumento se torna elástico ao caráter efêmero do “Tridente de I”, pela impermanência física, além do enunciado de arte. A atribuição de sentidos feita tanto ao tridente quanto ao Mirante não passa somente pelo sentido de monumentalidade presente na obra, mas na mudança de tratamento decorrente dessa operação artística, potencializando uma reconfiguração do imaginário, das identidades e experiências cotidianas. 

Quais são as questões presentes na relação de um artista que vem de fora de uma esfera urbana complexa, com uma rede de relações igualmente externas e propõe uma reinscrição das representações dadas nesse local? O olhar do artista sobre o outro, externo, seria o que Hal Foster (2005), em seu ensaio “O artista como etnógrafo” trabalha como troca entre sujeitos em termos econômicos e culturais. Esse olhar seria sempre em relação ao “outro” cultural, oprimido, pós-colonial, subalterno ou subcultural, colocado como um ente passivo. A imagem do artista comprometido em nome do outro cultural ou étnico se realiza no discurso de Vogler ao propor “I ♥ NI” com intuito de lançar luzes sobre a cooptação ideológica realizada através da mídia e do consumo.

Num terceiro momento, Vogler adapta seu projeto às condições impostas, trazendo à tona um símbolo de caráter ambíguo, que além de dialogar com os já existentes e incorporados no cotidiano citadino, potencializa-os a alcançar novos status nas redes de relações envolvidas.

Vale lembrar que há certas inscrições religiosas que utilizam os muros da cidade, encostas e pedras, funcionando como meio de comunicação e de intervenção em larga escala, atingindo a todos, com seu teor político e ideológico. Ao transitar pela metrópole do Rio de Janeiro vamos perceber que esse é um espaço de tensão, e, ao mesmo tempo, de troca, já que acaba sendo um espaço democrático de comunicação com a sociedade. Em algumas situações, esses escritos recebem até patrocínio das esferas públicas.

As relações semânticas entre a cruz e o tridente encontram interseções interessantes, embora algumas delas não sejam mencionadas pelos envolvidos. Segundo Jean Chevalier (1996, p. 310) a cruz é um dos símbolos cuja presença é atestada desde a mais alta Antiguidade; descrita como o mais totalizante dos símbolos, contendo uma função de síntese e medida, sendo a grande via de comunicação com o sagrado (terra-céu), símbolo ascensional, recortando, ordenando e medindo os templos, desenhando praças, atravessando cemitérios.

Por outro lado, já o tridente, lança de três pontas, é das mais antigas armas de pesca. Emblema de Posídon, deus grego dos oceanos sincretizado pelos romanos com Netuno. Chevalier (1996, p. 905) nos indica também que quando aparece com uma rede representa Cristo – o pescador de homens, podendo representar a trindade caso seus dentes tenham o mesmo tamanho. Cita a possibilidade de ter servido como representação oculta da Cruz.

Netuno é o deus romano do elemento úmido identificado com Posídon. Pierre Grimmal (2000, p. 327) cita a inexistência de lendas que lhe sejam próprias antes da associação com o deus grego que reina nos mares. Este último pertence, juntamente com Zeus, à segunda geração divina da cosmogonia grega. 

Chevalier nos avisa, ainda, que de acordo com a tradição cristã, o tridente na mão de Satanás é um instrumento de castigo; também é um símbolo da culpa, pois seus três dentes representam as três pulsões (sexualidade, nutrição, espiritualidade), sendo o perigo de perversão ou a fraqueza essencial que abandona o homem.

O tridente no Brasil, para as religiões de matriz africana, representa Exu, um orixá de importância primordial, pois é dinamismo, transformação e comunicação. W. Abimbola (2006, p. 2) nos ensina que para se viver em paz é preciso apaziguar, manter o equilíbrio com a natureza e com o cosmos. Este é composto pelas entidades benevolentes e malevolentes. Exu não se encaixaria em nenhum dos dois lados, pela sua habilidade de transitar entre ambos, além da função de levar as oferendas que vão garantir esse delicado equilíbrio. Reginaldo Prandi (2005) descreve que

Para um iorubá ou outro africano tradicional, nada é mais importante do que ter uma prole numerosa, e para garanti-la é preciso ter muitas esposas e uma vida sexual regular e profícua. É preciso gerar muitos filhos, de modo que, nessas culturas antigas, o sexo tem um sentido social que envolve a própria idéia de garantia da sobrevivência coletiva e perpetuação das linhagens, clãs e cidades. Exu é o patrono da cópula, que gera filhos e garante a continuidade do povo e a eternidade do homem. Nenhum homem ou mulher pode se sentir realizado e feliz sem uma numerosa prole, e a atividade sexual é decisiva para isso. É da relação íntima com a reprodução e a sexualidade, tão explicitadas pelos símbolos fálicos que o representam – instrumento ogó –  que decorre a construção mítica do gênio libidinoso, lascivo, carnal e desregrado de Exu-Elegbara. (Prandi, 2005)

Raul Lody (2003, p. 192) vai descrever também que o ogó – instrumento de madeira que representa o falo – não é muito comum no imaginário brasileiro, seu principal substituto é o tridente de ferro, como um símbolo de poder e de força.

Esses tipos de trabalhos artísticos abrem um campo de possibilidades para repensar não só a problemática afro-brasileira na disputa pelo espaço no imaginário social, como na questão da intolerância religiosa que vem agindo num crescente descompasso, utilizando a mídia e o poder público nos seus ataques massivos.

O monumento e a intervenção foi esvaziado de uma proposta inicial de afirmação simbólica do vínculo entre a população com o poder público, inversamente explorados na medida em que o então prefeito altera sua posição de patrocinador da obra para interditor. A ironia do artista se revela. A ambigüidade do tridente, entre Posídon, Exu e o Diabo, colocam o poder público “entre a cruz e o tridente”, melhor, entre Deus e o Diabo. Parodiando esse dito popular, Alexandre Vogler publica o ensaio na revista Concinnitas constando as matérias jornalísticas do tridente, constando na capa e contracapa da edição suas serigrafias dos cartazes lambe-lambe “Fé em Deus”, na capa, e “Fé em Diabo”, na contracapa.

Embora os tridentes – tanto de Exu, quanto de Netuno e do diabo – tenham a mesma morfologia acabam se distinguindo semanticamente. O tridente dos Exus de alguma forma traz em sua leitura o peso da construção social e histórica de um espaço de reconhecimento dos afro-descendentes e sua arte, cultura e signos, que vêm contornando ações empreendidas para aniquilar suas referências, com pouca visibilidade, mesmo com as políticas afirmativas e criação de espaços museológicos.

Podemos classificar a ambiguidade simbólica da obra “Tridente” como um caso de pseudomorfose. Como afirma Yves Alain Bois, “quanto menos se sabe do contexto, a gênese, mais facilmente pode-se tornar vítima do tranco da pseudomorfose.” (2006). Aqui, para essa situação, tomaremos a definição do fenômeno da pseudomorfose como “o surgimento da forma A, morfologicamente análoga ou mesmo idêntica à forma B, que, no entanto, não mantém relação alguma do ponto de vista genético”. (Bois, 2006). Compartilham a forma, mas têm conteúdos diferentes.

O que torna aqui a obra desconcertante é a tensão despertada pela pseudomorfose, potencializada, como já apontei, não só pela monumentalidade do desenho, como também pelo território simbólico do cruzeiro, pelo diálogo com a cruz, e acrescento, principalmente, pela sexualidade mal compreendida em relação ao orixá em questão, acionando, por outro lado, o conceito do tradicional “pecado”, explorado pelas entidades católicas e evangélicas. Se o tridente é um símbolo que representa Exu, ligado à sexualidade, como resolver essa aproximação de idéias tão contrárias trazidas pela cruz, que representa o martírio de Cristo para espiar os pecados da humanidade, com suas idéias de privação e castidade?

Por outro lado, o subjetivo do tridente não é encontrado em nenhum lugar, não escamoteando a moral cristã nem subvertendo o símbolo, mas no seu teor que pode avivar o sentido da sexualidade. Desta forma, pode ser percebido como um afrontamento onde “concebe a deflagração semântica da imagem menos como um simples afastamento do que uma violência, um ‘desublimizatório’ ato de agressão”. (Bois, 1996).

Analisando a estrutura do tridente e da cruz dentro de uma perspectiva formal vamos articular as concepções tradicionais de linha e superfície. Linhas do cruzeiro e do tridente, não formas autônomas, independentes, mas numa dimensão plástica de profundidade, como se a cruz se projetasse num prolongamento morro acima pela encosta verde. Os elementos aqui se relacionam com a ecologia urbana. Pontos brancos no verde. Linhas brancas que se desdobram. A inscrição no chão. Chão de mato verde inclinado. Apropriação do mirante.

O cruzeiro e o tridente que, do alto, observam Nova Iguaçu: a estação, a fachada frontal da Igreja de Santo Antônio e o cemitério igualmente branco, o cinza da cidade inscrita na paisagem e seu curso cotidiano. Porém, por pelo menos três dias, a cidade que olhou o mirante. A arte aqui se torna um campo ampliado, joga com as relações entre as coisas e pessoas. Sacode o campo político e religioso. E depois? A chuva leva a inscrição e plantam cem mudas de árvores. A comunidade do bairro toma a iniciativa de asfaltar a ladeira até o mirante. O sentimento de pertencimento se altera. Parafraseando Greenberg, é uma situação de arte de desordem, em que o tempo e o lugar impõem certo tipo de ordem na forma de probabilidades negativas.

O que sobressai nesse trabalho não são a substância nem o conteúdo, nem a concepção da obra em si, mas uma operação. Bataille chamaria essa operação de informe. A forma final do tridente será o resultado do processo, uma circunstância, que vai além da concepção, do conteúdo e de sua substância, não só pelo aspecto efêmero de sua imaterialidade recuperada pelas reportagens e posteriormente expostas como resultado final, mas como também pela quebra de um ideal de arte. Transpõem limites pré-estabelecidos da esfera estética e do senso comum a respeito da própria arte. O formal e o informal aqui aparecem nessa operação.

Na obra de Vogler vamos encontrar um conjunto de operações: a apropriação de uma prática extremamente comum, pintura de cal sobre encostas e pedras; a apropriação do símbolo carregado de ambiguidades; a ressignificação desse símbolo – o tridente; a ressignificação e a consequente valoração do cruzeiro; sua enunciação: intervenção urbana. A inversão da própria lógica do monumento, a sensação de fim e o reaparecimento da obra reapropriada em diversas mídias.

Seja lá qual tenha sido a escolha do artista para o monumento entre a cruz e o tridente, cooptação e consumo, sensacionalismo e propaganda religiosa ou denúncia do populismo mal engendrado, não homenageia, satiriza.

GALVÃO, 2009.

VELASCO, 2008.

Vogler, informação contida no site do artista.

BATAILLE, 1968. p. 177

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