Voz à hélio: Vogler, o esTridente

 

Num momento de intensa racionalização da produção artística, tantas vezes condicionada a programas próprios ou alheios, mediada por dinâmicas seletivas (editais e afins) que em muito determinam os processos de criação e cúmplice de estratégias de formação restritas a modelos genéricos, parece fazer-se mais estridente a parte da arte brasileira que destoa desses procedimentos, explorando formas e ações de difícil contenção lingüística, conceitual ou institucional.

O “método” antieconômico de esbanjamento e imprevisibilidade explorado por artistas como os cariocas Alexandre Vogler, Jarbas Lopes e Cabelo cultiva um estado/espaço de invenção que parece ir de encontro às demandas de um campo da arte pautado pela lógica produtiva, que tudo funcionaliza. Nesse processo, a coletividade tem sua presença ampliada ao potencializar pulsões e derivas individuais, tornando o coletivo uma célula de desestabilização e descondicionamento perante à sociedade: “A anarquia é a verdadeira ordem entre os homens, o resto é mero comércio”. Nesse contexto, a arte é outra coisa que não apenas forma e significado, e o artista é reposicionado. Como aponta Hélio Oiticica, a obra então foge à busca da interpretação. “O que resta é apenas a grande proposição da invenção, algo que mobilize o participador, o ex-espectador que agora também é participador, que mobilize ele a um estado de invenção”

Dentre as experiências que, na arte brasileira recente, têm explorado “estados de invenção” coletivos, parece-me particularmente interessante o trabalho Tridente de Nova Iguaçu (2006), de Alexandre Vogler. As abordagens possíveis são inúmeras, mas talvez se destaque a necessária análise das relações de circulação e de significação a que se vinculam as ações humanas quando tornadas públicas. Pensá-lo à luz do Fumacê do Descarrego (2002), trabalho do coletivo Radial, do qual Vogler é membro, e da instalação Gira (2007) me conduz, todavia, a inquietações outras, de ordem menos conceitual e institucional.

Nesses trabalhos, o artista explora instâncias não-racionalizadas da vida, ao propor experiências coletivas que têm origem em práticas espirituais/religiosas de limpeza e proteção. O estado de convivência catártico e poroso gerado adentra uma esfera além-linguagem que afeta brutalmente aquilo que é subjetivo e também sócio-cultural. . O o “estado de invenção” provocado pela arte dá a ver possibilidades de pensá-la em outros termos. E, para fazê-lo, é preciso que a própria prática artística esteja socialmente descondicionada, operando por campos distintos aos do cotidiano, ainda muito restrito, inclusive em suas configurações semânticas e cognitivas, ao estabelecido.

Alexandre Vogler credita à arte uma “função de descoberta”, “coisa da ordem do espírito”, e para tal faz uso de processos de criação pouco ortodoxos, que se esquivam ao entendimento a não ser por uma ampliação deste. O mesmo ocorre diante do campo da arte, que reconhece suas ações como tal mediante afrouxamento de seus mais tradicionais constructos.

Agir para além do establishment, da linguagem e principalmente do discurso, incorporando imprevisibilidades de todos os tipos e mantendo um espaço aberto no trabalho me parece uma forma de reverter dois posicionamentos complementares: a exponencial racionalização da prática artística, tantas vezes transformada em discurso (comentando ou analisando “questões”, com forte referencial cientificista); e a ideia de Wittgenstein de que “o que não pode ser dito deve ser calado”, que imprime uma lógica comunicacional à arte. Não só assumir – mas sobretudo experimentar – o campo do que “não pode ser dito” pode configurar uma alternativa ao fatídico destino de “permanecer calado” ou à previsão de uma arte cada vez mais denotativa. Essa experimentação talvez conforme uma elementar contribuição da arte à subjetividade e mesmo à vida em sociedade.

Clarissa Diniz